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O Outono/Inverno de 2017 que tanto tem hesitado em instalar-se no Sul da Europa é, curiosamente, uma temporada cheia de promessas, de mudanças significativas na paisagem da moda. Em especial no que diz respeito à moda para os pés. E falamos sobretudo de botas. As botas completam, a par com as camisolas de malha e os casacos de pelo coloridos, a santíssima trindade na procissão das ruas. Há botas de todos os tamanhos e universos, cravejadas de brilhos, ostentando revivalismos disco sound dos anos 70, botas com saltos geométricos Art Deco, botas de canos altos e justos acima do joelho a fazer pensar em Maria Schneider em “O Último Tango em Paris” ou botas de canos moles e amachucados, botas de cowboy, botas de combate, estas duas num revivalismo dos anos 80 e 90.

A cantora e designer Victoria Beckham na última edição do festival de Glastonbury

Mas no meio de tantas propostas, vencem, como sempre, aquelas que mais se adequam ao espírito do tempo. E estes são efetivamente tempos de revolução: a violência contra as mulheres, a fluidez dos géneros, a andróginia, vários hibridismos sexuais. Os criadores sempre atentos ao que anda no ar traduziram estas mudanças latentes e manifestas na recuperação das botas de combate. Altuzzara, Alexander Wang ou Valentino fizeram a sua própria leitura deste clássico, mas são muitas as celebridades que ostentam mesmo a sua versão mais mítica: as Dr. Martens. De Victoria Beckham e do filho Brooklin, às modelos Gigi e Bella Hadid, passado por Lily Rose Depp, filha do actor Johnny Depp e da cantora Vanessa Paradis, dois ícones dos anos 90 até às hit girls, bloggers, digital influencers e demais tralha virtual. São agora as celebridades que parecem dar o mote de rebelião às ruas e não o contrário. Uma coisa é certa: as botas de combate continuam a ser um dos mais politizados objetos de moda.

Dr. Martens: as botas dos trabalhadores pobres e dos artistas rebeldes

Quando pensamos em botas de combate há dois modelos que nos vêm de imediato à mente: as botas militares e as inglesas mais célebres que a família real, as Dr. Martens. E não é por acaso. É porque as botas que associamos sempre ao punk e ao grunge e que trouxeram para as passerelles o calçado dos trabalhadores ingleses nasceram há 70 anos, em 1947, e são também elas um produto da história trágica do século XX europeu: em 1945 o soldado alemão Klaus Maertens, enquanto convalescia de feridas de guerra inventou uma sola feita de borracha com ar comprimido que adaptou as botas militares.

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Em 1947, ele e um amigo registaram a patente e começaram a fabricar botas para a Alemanha em reconstrução. Em 1959, a família inglesa Griggs, que detinha o monopólio do calçado para a industria pesada adquiriu os direitos da botas e para as reforçar coseu a sola com fio amarelo. Custavam 2 libras e tornaram-se a botas da classe trabalhadora inglesa, dos mineiros aos construtores civis.

Wynona Rider, em 1989, num estilo minimalista rematado por umas botas militares

No final dos anos 70, Pete Towshend, dos The Who, oriundo e orgulhoso da classe operária inglesa, leva as Dr. Martens para os palcos, nos anos seguintes elas serão adotadas por todas as bandas punk e nos anos 80 até mesmo grupos de sonoridades distintas, como os Smiths, os Cure, os Stone Roses ou os Pixies aderem às simples botas pretas que se tornaram assim um símbolo a ostentar por quem se queria assumir como “diferente”. Por isso, o território das “doc” como eram carinhosamente designadas pelos seus cultores, foi sobretudo o da música e da poesia.

A robustez do calçado contrastava tantas vezes com a fragilidade de quem os envergava: Kurt Cobain, River Phoenix, Courtney Love, Winona Ryder, Michael Hutchence, são apenas alguns dos ícones dos anos 90, que invariavelmente usavam Dr. Martens e outros modelos de botas de trabalho, ou de combate, e cujas vidas precárias deixaram um rastro de melancolia sob as pesadas botas.

2017: botas de combate para um look andrógino

As criações de inspiração masculina dos anos 80 da marca Comme des Garçons, são a principal inspiração para o look das botas de combate

Apesar de estarem sempre no horizonte, as Dr. Martens desdobraram-se numa constelação de propostas, das mais caras às mais baratas, das mais posh às mais simples, das meras imitações das clássicas “Doc” a modelos multireferenciais onde se cruzam o vitoriano com a robustez militar, como o belíssimo modelo da Altuzarra, outras onde o universo motard e punk acrescentam vivacidade às puritanas botas de combate. Há depois as versões coloridas, costumizadas, ornamentadas com pedras, bordados, tachas, fivelas. O importante é perceber que as botas de combate não combinam com aquele alheamento que a moda às vezes parece alimentar. Atitude é preciso e nada favorece tanto um look marcante e afirmativo da diferença do que umas botas de combate bem usadas.

Atenção que, apesar do forte revivalismo dos anos 90 a pairar sobre as nossas cabeças, com os “mum jeans”, os veludos e os padrões florais, em 2017/18 as botas de combate revisitam menos o grunge dos anos 90 e mais o minimalismo puritano e negro e o look masculino dos anos 80. Portanto, elas servem para completar um fato de calça/blazer e camisa vitoriana, vestidos longos e fluidos, tailleurs de saia lápis e casaco com ombros estruturados, calças de riscas largas e com suspensórios, trench coats, calças de sultão. A grande revisitação são os criadores japoneses Yoji Yamamoto e Rei Kawakubo da Comme des Garçons ( à letra “como os rapazes”) mas, como tudo na moda, os grandes criadores somos nós próprios. Eis o grande combate.

Em 2017 as botas de combate continuam a marcar o visual andrógino como nesta proposta da Stradivarius