A tese

O primeiro-ministro, usando as mesmas palavras que o seu ministro das Finanças havia usado há uma semana no Parlamento, defendeu-se das acusações da líder do CDS-PP, que dizia que o Governo estava a fazer cortes de forma pouco transparente usando para isso um nível de cativações histórico, argumentando que apenas 0,09% do PIB de cativações que não foram desbloqueadas — 175 milhões de euros — é que foram aplicadas sobre receitas gerais. Ou seja, são de facto limitações aos serviços e não restrições sobre receitas que os próprios serviços acabaram por não ter.

Os factos

A questão foi levantada pela líder do CDS-PP e está no debate político há uma semana. Esteve o Governo a fazer cortes encapotados quando prometia aumentos de despesa e investimento nos serviços públicos depois de anos de cortes? O que sabe é que, no final do ano passado, o Governo não desbloqueou 942,7 milhões de euros de despesas que estavam cativadas.

Sabe-se também que essas cativações afetaram praticamente todas as áreas de atuação do Estado, com exceção das áreas que, por lei, não podem ser cativadas, caso do Serviço Nacional de Saúde e do Ensino Superior. Sabe-se também que tipo de despesas sofreram o maior aperto: aquisição de bens e serviços, mais de metade do valor cativo; reserva orçamental (parte dos orçamentos dos Ministérios), menos de um terço. Todos estes dados estão na Conta Geral do Estado de 2016.

O que não está na Conta Geral do Estado, ou em qualquer outro documento oficial, são os valores das cativações por cada tipo, da mesma forma como está desagregada na lei. Essa explicação foi dada por Mário Centeno, num discurso no Parlamento, na passada sexta-feira. Nas palavras do Ministro, estas cativações estão organizadas em dois grandes blocos.:

  1. Os primeiros 15% existem por motivos de precaução, para garantir que ao longo do ano há verbas disponíveis nas rubricas cativadas. Estas existiam nos orçamentos anteriores e aplicam-se à aquisição de bens e serviços (os chamados consumos intermédios do Estado). Em 2016, foram de 295 milhões de euros. Destes, apenas 175 milhões de euros dizem respeito a receitas de impostos (os 0,09% do PIB de que fala António Costa.
  2. Os segundos são aplicados sobre o crescimento da despesa e apenas quando o primeiro cativo está esgotado. Ou seja, só existem sobre a parte da despesa que representa um acréscimo face ao que aconteceu no ano anterior. Ou seja, nunca poderiam ser um corte face ao dinheiro gasto no ano anterior. Estes, nas contas de Mário Centeno, valeram 617 milhões de euros, mais de dois terços do total.

As cativações deste segundo bloco são colocadas em prática para evitar derrapagens, especialmente provocadas por serviços que fazem estimativas demasiado otimistas quanto às receitas que vão conseguir ao longo do ano, para dessa forma terem mais orçamento para gastar, mesmo que essas receitas não se concretizem.

A conclusão

António Costa responde a Assunção Cristas, tal como Centeno havia feito há uma semana à direita, dizendo que as cativações não são cortes, argumentando que apenas 175 milhões dos 942,7 milhões de euros das cativações que não foram desbloqueadas em 2016 dependiam de receitas de impostos, e que, por isso, são as cativações efetivas. Mas este entendimento enfrenta alguns problemas:

  1. Não há qualquer dado oficial que suporte estes valores, apenas as contas dadas a conhecer pelo ministro das Finanças, repetidas pelo primeiro-ministro.
  2. Tomando como certas as contas, se levarmos à letra as palavras do primeiro-ministro, estas contas não podiam estar corretas porque cativos efetivos são todos os cativos finais, e não apenas os 175 milhões de euros de cativações tornadas finais, porque não se concretizaram as receitas de impostos que deviam pagar estas despesas.
  3. De facto, as cativações não significam necessariamente cortes e os números das despesas do Estado mostram um aumento generalizado dos gastos em praticamente todas as áreas. Mas não em todas.

O primeiro-ministro, tal como o ministro das Finanças havia feito há uma semana, escolheu a dedo um número que até pode mostrar que os cortes verdadeiramente feitos com estas cativações — se considerarmos cortes o que está previsto no orçamento e cortado por decisão política — podem ser mais baixos do que o número total, que é historicamente alto. Mas isso não faz com os restantes 768 milhões de euros não sejam cativações e que não representem constrangimentos nos serviços.

As cativações até podem não ser cortes propriamente ditos, mas usar estes 175 milhões de euros é uma forma de dourar a pílula que não representa a realidade por inteiro. As cativações foram de 942,7 milhões de euros. Estas impediram serviços de gastar em despesa que estava prevista no orçamento, aprovado no Parlamento por PS, Bloco de Esquerda e PCP. E não foram a única forma de fazer poupanças.

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