A citação completa

O atual governo resolveu encontrar novas condições para o empréstimo que o Estado fez ao Fundo de Resolução e, portanto, aos bancos. O que fez foi perdoar quase metade do empréstimo que foi concedido. Com certeza que [se estivesse no Governo] não, não o faria. Se eu estivesse no Governo não deixaria de ter preocupação com a estabilidade financeira. Nós sabemos que estes prazos tinham de ser estendidos de forma a que os bancos pudessem digerir sem perturbação para o sistema financeiro as responsabilidades que tinham assumido. Mas isso teria de pressupor que o Estado não teria prejuízo para os contribuintes. Porque é que os bancos só pagam o capital ao fim de 30 anos? Quase quatro mil milhões ao fim de 30 anos não tem o mesmo valor que tem hoje, seguramente. E muito menos quando o Estado, para se financiar, [paga mais]. E ao longo destes 30 anos os bancos irão pagar de juro por esse dinheiro, ao longo desses anos todos, seguramente menos do que o Estado tem de pagar para se financiar em igual montante. Portanto, é um prejuízo que se impõe aos contribuintes e que seria desnecessário, penso eu.

O que está em causa?

Quando anunciou o acordo para a venda de 75% do Novo Banco à Lone Star, António Costa garantiu que, apesar de a venda não render qualquer encaixe imediato para o Fundo de Resolução, não haveria “qualquer perdão” aos bancos.

Mas Pedro Passos Coelho, na entrevista à SIC na quinta-feira (e Maria Luís Albuquerque, uns dias antes, à Renascença) acusou o Governo de, nas vésperas do acordo com a Lone Star, ter definido condições para os pagamentos pelos bancos ao Fundo de Resolução. Estas novas condições fariam com que tivesse havido, na realidade, um “perdão” de quase metade das responsabilidades da banca associadas à resolução do BES (e do Banif). Quem tem razão?

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Quais são os factos?

Um pouco de contexto. O Banco Espírito Santo foi alvo de resolução em agosto de 2014. Alguns ativos e dívida ficaram no BES (que passou a chamar-se, informalmente, o BES mau) e foi criado o Novo Banco para receber outros ativos e passivos. Para que o Novo Banco tivesse capitais suficientes para ter as portas abertas, houve uma injeção por parte do Fundo de Resolução, um organismo que está na esfera pública, é gerido pelo Banco de Portugal e vive com as contribuições (fiscais) dos outros bancos do sistema. Mas como os bancos não tinham ainda acumulado contribuições comparáveis aos capitais necessários (4.900 milhões) foi preciso um empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução.

O plano era que o Novo Banco fosse vendido a um valor próximo daquele que foi injetado e, portanto, se esse tivesse sido o caso, esta não seria uma questão relevante. Porquê? Porque havendo um bom encaixe com a venda, minimamente comparável ao que foi injetado no banco, o Fundo de Resolução teria dinheiro para reembolsar todo (ou quase todo, no imediato) o empréstimo público que tinha sido feito.

O objetivo era que isso acontecesse até 2016, mas a primeira tentativa de venda foi cancelada em agosto de 2015 — ainda na vigência do anterior Governo PSD/CDS –, quando se tornou óbvio que o Novo Banco não valia tanto (em parte porque a situação de todo o setor bancário português e europeu também se deteriorara).

Era no contexto deste plano que Maria Luís Albuquerque, ex-ministra das Finanças, e o Governo PSD/CDS diziam que a operação não teria custos para os contribuintes: porque o Fundo de Resolução usaria a receita da venda para reembolsar o Estado e, caso o valor não chegasse mas a diferença fosse pouca, os bancos não teriam dificuldades em fazer contribuições para o Fundo de Resolução de forma a pagar, em pouco tempo, o capital público e os juros associados ao empréstimo.

Falhando a venda em 2015 e sendo feita a venda, por zero (de encaixe para o Fundo de Resolução), em 2017, criou-se um problema. Como é que o Fundo de Resolução iria reembolsar o Estado sem ter dinheiro para isso? E, sendo o fosso tão grande, como é que se pode fazer com que os bancos injetem dinheiro no Fundo de Resolução sem que isso os coloque, também, numa situação de subcapitalização?

  • Para agravar este cenário, houve também a resolução do Banif, que implicou mais gastos para o Fundo de Resolução (atualmente 353 milhões). Pelo BES/Novo Banco, o Fundo de Resolução já devia 3.900 milhões de euros ao Estado e 700 milhões aos bancos (sim, porque os bancos também emprestaram dinheiro ao Fundo de Resolução quando houve o colapso do BES).

Para os bancos, esta era uma nuvem negra no horizonte, imprevisível e difícil de quantificar. Foi por isso que, sem dar dados concretos, em setembro de 2016 se indicou que iria haver uma revisão das condições dos empréstimos. A consequência disso chegou a 21 de março, quando o Fundo de Resolução divulgou as novas condições dos empréstimos do Fundo de Resolução.

Conclusões principais:

  • Os empréstimos do Estado ao Fundo de Resolução passaram a só ter de ser pagos daqui a quase 30 anos, em dezembro de 2046, em vez de agora com a venda do Novo Banco. Fala-se, aqui, do reembolso pleno do capital devido.
  • Até esse momento do reembolso, o Fundo de Resolução continuará a pagar juros ao Estado, mas estes foram fixados, pelo menos, no que diz respeito aos próximos anos (até 2021). Pelos empréstimos relativos ao BES a taxa será de 2% até 2021. Nas responsabilidades associadas ao Banif, há um juro fixo de 1,38%. Não se pode falar em redução ou aumento dos juros em relação às condições anteriores porque este é um empréstimo a 30 anos, e antigamente os juros eram definidos por prazos curtos.
  • Depois de 2021,”a taxa de juro será revista a cada período de cinco anos passando a considerar-se a taxa de juro nominal anual que reflita o custo de financiamento da República para um prazo de cinco anos.
  • Frase chave do Fundo de Resolução: “Estima-se que o montante total de contribuições estabilize em cerca de 250 milhões de euros por ano, durante os próximos anos”. Este é o ponto crucial: não iria haver lugar a contribuições extraordinárias para acelerar os reembolsos.

Ou seja, os bancos ficaram a saber que não teriam de pagar, no seu conjunto, mais de 250 milhões por ano, sensivelmente o esforço que tem sido feito até agora. Isto deu previsibilidade fiscal, porque os bancos não reembolsam diretamente o empréstimo do Estado, apenas fazem contribuições (fiscais) para capitalizar o Fundo de Resolução. É por isso que é incorreto dizer que o Fundo de Resolução é dos bancos. Não é: apenas gere, em nome do Estado, as contribuições feitas por estes, e é o Governo que determina o ritmo a que essas contribuições devem ser feitas.

A revisão das condições do empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, embora não altere as responsabilidades do sector bancário face ao Fundo de Resolução, é mais uma medida destinada a assegurar a estabilidade financeira, após um período de profunda recessão, e a favorecer o reforço da capitalização dos bancos portugueses, bem como da competitividade da economia portuguesa”. (Ministério das Finanças)

Ora, voltando ao raciocínio de Pedro Passos Coelho, existe ou não um “perdão” à banca? Existe, ou não, um favorecimento, que Passos Coelho quantifica como “quase metade” do que a banca deve ao Estado?

Eis alguns dados que podem ajudar a formar uma opinião.

  • O Fundo de Resolução vai remunerar o empréstimo do Estado com taxas que pretendem refletir os custos da República. Para os primeiros cinco anos, as taxas são de 2% (BES) e 1,38% (Banif). Por comparação, a julgar pelos preços do mercado, o Estado paga mais do que isso por dívida a cinco anos: 2,2% atualmente e mais de 2,4% no final de março, quando este prolongamento foi anunciado.
  • Pior: se tivermos em consideração o custo médio da dívida pública portuguesa (ponderado por todos os prazos), este é de 3,2%, segundo o IGCP. Esta será, eventualmente, a referência mais correta, já que estamos a falar de dívida do Estado, fungível, e isto é o que o Estado paga, em média, por todo o bolo da dívida.
  • Pior ainda: se tivermos em consideração o que o Estado pagaria para emitir dívida a 30 anos, a taxa não seria inferior a 4,5% — e há dúvidas sobre se mesmo pagando 4,5% o Estado conseguiria emitir um montante significativo de dívida a 30 anos, neste momento. Esta seria, contudo, a referência que poderia fazer menos sentido comparar, porque a taxa só foi definida até 2021.

E há um fator adicional: não se justificaria incluir, além da taxa de juro da República, um prémio de risco adicional (um spread) por se estar a emprestar à banca? Ou seja, se o que está a acontecer é o Estado fazer um empréstimo para se substituir aos bancos — que são os contribuintes exclusivos para o fundo — não devia ser remunerado por esse risco? Não faria sentido cobrar um spread aos bancos da mesma forma que os bancos cobram um spread a um qualquer comprador de casa, conforme o seu risco?

É por fatores como estes, conjugados, que economistas como Ricardo Cabral, colunista do Público, defendem que está, de facto, a haver um perdão. A opção deste economista é olhar para a taxa a 30 anos (29, em rigor) e extrair daí uma taxa de desconto. Ou seja, da mesma forma que um euro hoje não é o mesmo que um euro daqui a 30 anos, o economista acrescenta um spread de um ponto percentual e calcula que os 4.953 milhões de euros que hoje são devidos pelo Fundo de Resolução, na realidade, equivalem a 2.278 milhões de euros em valor atual. Ou seja, quase metade.

Este é, contudo, um cálculo subjetivo, com qualquer alteração dos pressupostos a levar a alterações significativas no resultado. Além disso, é feita uma opção por olhar para uma hipotética emissão a 30 anos — o que, sendo uma opção válida, não é a única abordagem possível.

A conclusão

A conclusão é que Passos Coelho faz uma avaliação esticada do eventual favorecimento que é dado aos bancos. Apesar de o raciocínio ser correto, o líder do PSD tende a considerar a hipótese mais pessimista. Para chegar a um “perdão” de “quase metade”, temos de assumir um conjunto de pressupostos subjetivos e, sobretudo, fazer uma análise à luz do que (supostamente) o Estado pagaria para emitir dívida a 30 anos (4,5%, segundo a Bloomberg). Contudo, não é claro que o Estado pagasse esse valor se tentasse mesmo fazer uma emissão de dívida com esse prazo tão longo, neste momento. Além disso, a referência que os especialistas ouvidos pelo Observador consideram mais adequada é o custo da dívida a cinco anos (2,2%) ou, então, o custo médio de toda a dívida (3,2%). Assim, e também porque não foi cobrado qualquer spread, existe um favorecimento mas que não chegaria aos valores expressados pelo líder do PSD.

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