O que vale mais: a popularidade ou a lei? A pergunta parece um pouco elementar, mas contém uma questão fundamental para a saúde de uma república democrática. A escolha da primazia da lei significa a existência de previsibilidade política, de enquadramento institucional, de regras e de limites de acção definidos. E a outra opção implica o oposto – a imprevisibilidade e a arbitrariedade do poder sem limites claros ou definidos a não ser pela popularidade da figura política em causa. Ora, sendo evidente que Portugal é uma democracia consolidada onde impera a lei, tem de causar apreensão que, em poucos dias, dois órgãos de soberania nacional tenham preferido guardar as regras e os limites institucionais no bolso e procurado legitimar uma actuação excessiva através da popularidade (da sua própria ou da decisão tomada). Foi o caso do Presidente da República, com o encerramento do teatro Cornucópia. E foi o caso da Assembleia da República, com a atribuição do “prémio Direitos Humanos” a António Guterres.

O comportamento institucional de Marcelo Rebelo de Sousa, que em um ano já alterou o papel da Presidência e informalmente lhe atribuiu poderes executivos na definição de políticas públicas, deixou de surpreender. Mas não deixou de estar errado. Logo desde o início do seu mandato, Marcelo ultrapassou rotineiramente os limites das suas funções. O episódio da Cornucópia foi apenas o último e uma das suas mais inequívocas interferências – embaraçou o ministro da Cultura, forçou-o a uma alteração de agenda e a uma negociação que havia sido previamente encerrada, desqualificou-o politicamente e abriu um precedente para que outros agentes culturais batam à porta da Presidência. Sim, entende-se a tentação de Marcelo. Mas não se percebe que continue a actuar deste modo com tamanha tolerância institucional, política e mediática. Imaginam o que seria se o mesmo fosse feito por Cavaco Silva? É certo que, neste contexto de geringonça e com tão elevada popularidade, Marcelo tem os partidos na mão e a garantia de que nenhum o afrontará. Mas que isso lhe dê o poder de subverter os equilíbrios de poder do regime, sem contraditório, é preocupante.

Marcelo não é o único. A Assembleia da República decidiu seguir o (mau) exemplo e, por unanimidade, atribuir a António Guterres um prémio para o qual, de acordo com os regulamentos do mesmo, Guterres não seria elegível. O caso foi relatado pelo jornalista Rui Pedro Antunes, aqui no Observador. Vejamos. Ponto 1: o regulamento do prémio é claro e estipula que o mesmo é atribuído para reconhecer o “alto mérito da actividade de uma organização não governamental” ou um “original literário, científico, designadamente histórico ou jurídico, jornalístico ou audiovisual”. Ponto 2: os deputados justificaram a escolha de Guterres com base no trabalho do ex-primeiro-ministro no Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas (ACNUR). Ponto 3: o problema é que essa é uma agência governamental e, como tal, o seu trabalho na liderança da ACNUR não é elegível para o prémio. Ponto 4: ninguém se importou com isso. Ponto 5: confrontado com a questão da incompatibilidade imposta pelas regras concursais, o deputado e presidente da comissão parlamentar Pedro Bacelar Gouveia ripostou assim: “se há qualquer idiota que não concorda com a atribuição do prémio, que recorra; isto não foi decidido por uma qualquer comissão, foi decidido por deputados da comissão dos Assuntos Constitucionais”. Traduzindo: o prémio foi entregue a António Guterres, independentemente da violação das regras do concurso, porque os deputados acharam que, sendo quem são, podiam decidir como decidiram.

Não é de todo surpreendente que, tanto num caso como noutro, se tenha ouvido mais silêncios do que reparos. Afinal, Marcelo até é alguém bem-intencionado e Guterres até fez trabalho de valor na área dos Direitos Humanos. E daí que poucos liguem efectivamente ao cumprimento das regras: olha-se mais para o resultado da decisão do que para o procedimento que levou à decisão. Mas é no facto de tanta gente achar isto tudo irrelevante que está a gravidade. Isto devia ser notícia em todos os jornais e indignar todas as pessoas que prezam o bom funcionamento do regime. Que dois órgãos de soberania se comportem deste modo é grave. Que ninguém se importe é ainda pior.

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