A política oferece-nos por vezes situações em que a realidade supera a ficção. Quando se pensava que a trapalhada à volta da TAP já tinha tido de tudo — um resgate bilionário, despedimentos polémicos, audições parlamentares de inquérito, quedas de membros do governo, pancadaria em gabinetes ministeriais — eis que um novo capítulo se revela: a TAP desfez de alto a baixo a reputação e o bom nome profissional da sua ex-CEO, Christine Ourmières-Widener. Em resposta ao pedido de indemnização (5,9 milhões de euros) da ex-CEO da TAP, a empresa expôs a sua argumentação para rejeitar tal indemnização. Ora, nessa argumentação, a TAP não faz a coisa por menos: destrói completamente o trabalho da ex-CEO, desvaloriza o seu papel na empresa, acusa-a de crimes, aponta-lhe conflitos de interesses e, a cereja no topo do bolo, informa que Christine Ourmières-Widener “nunca foi trabalhadora” da companhia aérea.

No detalhe, reportado pelo jornal ECO, o insólito ganha maiores proporções. A TAP desconsidera o desempenho da ex-CEO, afirmando que as suas experiências “foram tudo menos um sucesso” e que os lucros obtidos não se deveram a ela, mas sim à recuperação precoce e global do sector da aviação. A TAP indica que Ourmières-Widener, obrigada à exclusividade, acumulava várias funções noutras entidades, tais como uma consultora de viagens (O&W Partners), uma empresa de inovação aeronáutica (ZeroAvia) e um instituto governamental do Reino Unido (MetOffice). A TAP acusa também a ex-CEO de promover conflitos de interesses, ao colocar a companhia aérea a negociar com a Zamna (empresa israelita onde trabalhava o marido) a aquisição de uma solução tecnológica para validação de dados de passageiros. Informa ainda que esse negócio não avançou devido à intervenção da então administadora Alexandra Reis, facto que terá gerado animosidade entre ambas e conduzido à decisão da ex-CEO de despedir Alexandra Reis — uma decisão que a TAP declara ter sido feita “à revelia” da administração e através de “um acordo ilegal e para o qual [a ex-CEO] não tinha poderes”. Ou seja, o retrato traçado dificilmente poderia ser pior: para além de incompetência, a TAP descreve a sua ex-CEO como alguém que geriu a empresa motivada por ganhos pessoais.

Só que o caso consegue mesmo ser ainda pior. A TAP chega ao ponto de elucidar que Christine Ourmières-Widener não tinha qualquer contrato de trabalho com a companhia aérea e que o seu vínculo era precário e poderia “cessar a qualquer momento”. Ou seja, a ex-CEO exerceu funções de alta responsabilidade em violação do Estatuto do Gestor Público, pois não existia contrato de gestão com os accionistas da empresa e com o Ministério das Infraestruturas. Aliás, a TAP alega que o único vínculo existente era um “directorship agreement”, que “nunca foi ratificado em Assembleia-Geral ou por uma Comissão de Vencimentos”. Para acabar em beleza: até o salário auferido por Christine Ourmières-Widener foi considerado ilegal, por superar (largamente) o do CEO anterior, num contexto em que a empresa estava impedida de aumentar remunerações por estar sob regime de “situação económica difícil”, decretado pelo Governo.

Tudo isto é caricato, mas também suficientemente grave para exigirmos respostas e responsabilidades políticas. Sendo verdadeiras as acusações da TAP à sua ex-CEO, não pode deixar de nos intrigar como é que, após inspecções por entidades públicas e comissões parlamentares de inquérito, só agora a TAP se apercebeu das ilegalidades e irregularidades sistemáticas à volta da actuação e vínculo legal de Christine Ourmières-Widener — alguém não falou atempadamente? E, no governo, ninguém reparou que a ex-CEO da TAP não tinha um contrato válido? Custa a acreditar em tanta incompetência.

António Costa, que tutela actualmente a pasta das Infraestruturas, tem muitos esclarecimentos a prestar — por exemplo: subscreve esta avaliação do desempenho da ex-CEO? E Pedro Nuno Santos, o ministro das Infraestruturas à data dos factos relatados, deve explicar os méritos que viu em Christine Ourmières-Widener — a CEO que recrutou, que defendeu e que disse que não teria demitido — e a justificação para que esta não tivesse contrato válido e auferisse um salário acima do permitido por lei. Enquanto se aguarda, há uma certeza que este episódio traz à superfície: à volta de Pedro Nuno Santos reina a informalidade irresponsável.

Alexandre Homem Cristo é candidato às eleições legislativas pela Aliança Democrática

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