A qualidade de uma democracia republicana mede-se, entre outras vias, pelo comportamento dos seus representantes, tanto governantes como parlamentares. Isto porque os nossos regimes liberais não são apenas compostos de regras, leis, instituições, freios e contrapesos. O cumprimento da lei não chega – de nada servem as regras e as instituições se umas não forem cumpridas e outras não forem respeitadas, mesmo quando assim a lei o permite. Os regimes liberais distinguem-se, para além da forma de governo, pela sua dimensão moral. Estão suportados em pilares éticos e são mantidos por quem acredita nos valores da liberdade, igualdade, justiça, dignidade humana, diversidade, tolerância. E, como tal, a credibilidade de um sistema político perante os cidadãos assenta, também, no reconhecimento do respeito por esses valores por parte dos seus representantes – e não, somente, do cumprimento da lei e das regras, pois algo ser legal não significa que seja ético.
É por isso que, em várias democracias maduras, os políticos abandonam as suas funções quando se vêem envolvidos em casos que põem em causa a sua idoneidade enquanto servidores públicos. Só no último ano, exemplos não faltam. Bruno Le Roux, ex-ministro do Interior em França, demitiu-se devido à contratação das suas filhas para assistentes parlamentares. Aida Hadzialic, ex-ministra da Educação na Suécia, demitiu-se por ter sido apanhada a conduzir sob efeito de álcool (0,2 g/l). Keith Vaz, ex-deputado inglês do Partido Trabalhista, demitiu-se por se ver envolvido num caso de prostituição masculina. Ard van der Steur, ex-ministro da Justiça da Holanda, renunciou ao cargo face à acusação de que, em 2001, teria ocultado informações ao parlamento sobre um caso de corrupção de justiça. José Manuel Soria, ex-ministro espanhol da Indústria, demitiu-se após ter sido conhecida a sua relação com empresas em paraísos fiscais. Sigmundur Gunnlaugsson, ex-primeiro-ministro da Islândia, renunciou ao cargo quando se viu envolvido no escândalo dos Panama Papers. E por aí fora.
Em Portugal, resiste uma certa dificuldade em compreender esta lição elementar: o regime tem de manter uma dignidade moral e quem ocupa cargos públicos tem de estar acima de qualquer suspeita. Aliás, um dos debates deste tempo ilustra bem o problema: não se precisa dos tribunais para afirmar que Sócrates, enquanto agente político, é culpado – basta saber que, enquanto primeiro-ministro, viveu às custas de transferências ocultas de um amigo com quem o Estado mantinha negócios. Mas se Sócrates é um óbvio caso de polícia, a cena política portuguesa está repleta de situações cuja inconsequência envergonha.
Carlos César (PS) tem toda a sua família empregada em cargos públicos, incluindo posições de nomeação. Ricardo Rodrigues (PS), célebre por ter sido condenado em tribunal pelo roubo de gravadores a jornalistas durante uma entrevista, foi escolhido pelo PS e há semanas eleito pelo parlamento para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. António Gameiro (PS), conhecido por ter sido condenado em tribunal pela apropriação indevida de 45 mil euros de uma cliente (e com pena agravada pelo Tribunal da Relação), foi (novamente) eleito para o Conselho de Fiscalização do Sistema Integrado de Informação Criminal. E, menos recente mas interessante de comparar com o que sucedeu na Suécia, Glória Araújo (PS), à época deputada (2013), foi apanhada pela polícia a conduzir sob efeito de álcool (2,41 g/l) – e recusou renunciar.
Todos os exemplos recentes são do PS? Sim, como seriam do PSD se estivesse no governo – o poder permite aos partidos agir à sua conta e vontade. Eis a arrasadora indiferença dos partidos aos critérios éticos, sobretudo quando integram a maioria parlamentar. Ora, é fácil (e justo) apontar o dedo aos partidos. Mas tudo isto apenas acontece porque se entrega aos políticos a decisão em benefício próprio, sem ter contrapeso na sociedade civil – isto é quem proteja o sistema político, denuncie e pressione os partidos a alterar comportamentos que, sendo legais, não são éticos. Só que, no fim de contas, ninguém se importa realmente. O facto de as recentes eleições em plenário da Assembleia da República (Ricardo Rodrigues e António Gameiro) mal terem sido notícia é prova suficiente. Depois não há surpresas: quem não se dá ao respeito não é respeitado.