Depois do choque, o dia seguinte. E, com ele, o inevitável sentimento de insegurança, ao qual os governantes tentam ansiosamente responder. Olhando para a forma como o têm feito, fica claro que a precipitação continua a ser a primeira consequência política dos atentados terroristas em solo europeu ou americano. É que, passados dias desde os ataques à redacção do Charlie Hebdo, surgiram, um pouco por toda a Europa, dezenas de intenções de proceder a alterações legislativas em nome do combate ao terrorismo.

Ora, destas várias propostas sobressai uma grande ilusão: a de que há medidas que possamos tomar para garantir efectivamente a nossa segurança. Não há. Não é possível eliminar o risco de segurança em que vivemos nas sociedades livres. Porque enquanto houver liberdade, privacidade e direitos, haverá sempre quem neles se refugie para se esconder, para planear ataques, para pôr violentamente a vida de outros em risco. Em democracia, as regras do jogo são mesmo assim – optámos pela liberdade, enquadrada pela lei e pela necessidade de confiarmos uns nos outros, pelo que temos de aceitar os riscos que daí advêm. De resto, só num Estado fechado, controlador e inimigo da liberdade se poderia ter a ambição de anular tais riscos – e ninguém quer coisa semelhante.

Esta ilusão significa, na prática, que o que está hoje em causa é aceitarmos a possibilidade de o dilema “segurança-ou-liberdade” estar ultrapassado, no sentido dessas medidas securitárias já não serem eficazes no combate ao terrorismo. Isto é, no sentido de haver pouco ou nada que mais possamos fazer para garantir a nossa segurança sem, no processo, prejudicarmos as bases da nossa identidade. O sacrifício das nossas liberdades, que tantas vezes aceitámos em nome de uma maior segurança, é cada vez mais vão – as liberdades perdem-se, a insegurança fica. No final de contas, é mais o que se perde do que o que se ganha.

É certo que o surgimento de novas ameaças e o recente desenvolvimento tecnológico mudaram o mundo nos últimos 20 anos e, forçosamente, obrigaram a alterações significativas nos nossos mecanismos de defesa. Mas, por mais que nos custe reconhecê-lo, essas mudanças abalaram também os alicerces das nossas democracias, na medida em que a nossa resposta a essas mudanças colocou sucessivamente em causa direitos humanos e liberdades individuais.

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Veja-se, por exemplo, o caso dos programas de vigilância ilegal das comunicações, conduzidos em segredo, sem discussão política e aplicados sobre toda a população. A nossa réplica ao modus operandi do terrorismo islâmico (que opera na clandestinidade e está dependente de comunicações globais) implicou prejudicar a privacidade de milhares de milhões de pessoas insuspeitas por via da gravação de chamadas telefónicas, e-mails, mensagens de texto. Para que fins estão compilados esses dados, quem os usa e para quê?

Sim, deve haver vigilância de suspeitos. Sim, tem de haver medidas para perseguir quem vive para o terror. E sim, há margem para melhorar, pelo que faz sentido discutirmos alterações da nossa legislação, assim como criar vias de troca de informação entre as várias polícias europeias. Mas sacrificar as liberdades e os princípios que nos definem, em nome do medo, será sempre uma vitória para quem nos quer aterrorizar. Uma vitória que continuaremos a entregar de bandeja enquanto não nos convencermos que, havendo liberdade, nenhuma medida será verdadeiramente suficiente para nos fazer sentir seguros.

Por tudo isso, entre as muitas outras propostas perigosas, inquieta que governantes franceses clamem por um Patriot Act para a França – o que significaria a suspensão de direitos constitucionais em nome de uma (falsa) ideia de segurança. Fazê-lo é não entender que, confrontados com a nossa liberdade, haverá sempre extremistas a sentir-se ofendidos e a reagir como os do ataque ao Charlie Hebdo. É não entender que esses extremistas não precisam de uma razão para matar, apenas de um pretexto. É, no fundo, não entender que, por mais que nos matem, só seremos derrotados se, por causa deles, deixarmos de ser nós próprios.