A primeira vez que vi Miguel Galvão Teles foi num recorte de jornal que o seu filho Jorge me mostrou, orgulhoso. Éramos ambos miúdos, colegas do mesmo colégio, e Miguel Galvão Teles, o pai do Jorge, conquistara já o respeito de todos pelas suas extraordinárias qualidades humanas e pelo brilhante fulgor da sua inteligência. A palavra “génio”, gasta de tão vulgarizada, aplica-se como a poucos ao português que hoje morreu.    

Assembleia geral de accionistas do BCP em Matosinhos

Nascido no Porto em 1939, filho de Inocêncio Galvão Teles, um eminente civilista, professor da Faculdade de Direito de Lisboa e ministro da Educação entre 1962 e 1968, Miguel Galvão Teles estudou na École Française de Lisboa e, depois, nos liceus de Pedro Nunes e Passos Manuel. Neste último, teria como professores José Hermano Saraiva e Joel Serrão, datando dessa época algumas das grandes amizades que manteria pela vida fora.

Já então Miguel Galvão Teles se distinguia como um aluno excepcional, mas que jamais poderia ser qualificado como um “urso”. Pelo contrário, nunca abdicou dos prazeres da vida e do gozo das paixões. Das maiores de todas, o futebol, de que foi praticante amador e dirigente respeitado. Poucas coisas o fizeram sofrer tanto na vida como assistir aos jogos do Sporting. Foi presidente da assembleia geral desse clube entre 1995 e 2006 e, em 2011, presidiu à comissão instaladora do Tribunal do Desporto.  

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Miguel Galvão Teles entrou na Faculdade de Direito de Lisboa no ano lectivo de 1956/1957, tendo como colegas Jorge Sampaio, José de Sousa e Brito, Luís Braz Teixeira, José Lebre de Freitas ou Jorge Sá Borges. Membro da Juventude Universitária Católica, como era timbre dos jovens de elite da época, foi presidente da delegação da JUC na Faculdade de Direito. Na Associação de Estudantes, na direcção liderada por Jorge Sampaio, pertenceria ao conselho fiscal juntamente com Carlos Ferreira de Almeida e Rui Machete. Concluiria a licenciatura em 1961/1962, com a média final de 18 valores, sendo o melhor aluno do seu curso.

Uma vez, em conversa com José de Sousa e Brito, outro amigo de sempre, vi-o recordar-se do tempo de estudantes, em que ambos leram no original a obra de H. L. Hart, discutindo-a acaloradamente e à exaustão, algo que seria impensável na esmagadora maioria dos alunos de Direito dos nossos dias, ansiosos por “fazer a cadeira” à base de fotocópias ou textos extraídos da Internet. Já então se revelava uma das características mais marcantes da sua personalidade, o gosto pelas discussões de problemas jurídicos, tanto mais apetecíveis quanto mais difíceis.

Com Sousa e Brito, durante vários anos participou em apaixonados debates na Sociedade Portuguesa de Filosofia, num velho andar da Avenida da República. De cigarro na mão, expunha os seus raciocínios com auxílio de um lápis de giz, num quadro negro, dizendo com desarmante simplicidade que era assim que gostava de pensar. Pensar alto, em diálogo com quem quer que fosse. Quem fosse capaz de estar à altura da cartesiana racionalidade com que Miguel Galvão Teles se embrenhava pelos caminhos tortuosos da lógica deôntica e da filosofia analítica. Um dos seus primeiros artigos jurídicos, talvez o primeiro, publicado em 1959, ainda estudante, chama-se, não por acaso, “Da teoria egológica do Direito para uma noção de Direito”.

Em 1963 concluiu o curso complementar de Ciências Jurídicas, com a tese “Obrigação de Declaração Negocial”, um ramo do Direito onde o seu pai se notabilizara e que Miguel Galvão Teles iria mais tarde abandonar, trocando-o pelo Direito Público e, mais precisamente, pelo Direito Constitucional e pelo Direito Internacional. Porém, ao longo da sua vida profissional evidenciaria uma ímpar polivalência, sendo capaz de se aventurar a fundo tanto na defesa de causas no Tribunal Internacional de Haia como nos complexos meandros do direito bancário e da advocacia de negócios.

Quando cursava o 6º ano do curso de Direito participou na greve académica de 1962, na sequência da qual Marcello Caetano se demitiria da reitoria da Universidade de Lisboa e seu pai, Inocêncio Galvão Teles, da direcção da Faculdade de Direito. Com Nuno Brederode dos Santos, organizou a defesa jurídica dos alunos alvos de processos disciplinares e, mais tarde, durante o marcelismo, actuou frequentemente como elo de ligação entre sectores oposicionistas e o novo presidente do Conselho. Tal aconteceria, por exemplo, quando, a pedido de Jorge Sampaio, obteve autorização para o regresso a Portugal de Eurico de Figueiredo.

Manteve sempre uma relação de proximidade intelectual e afectiva a Marcello Caetano, o que diz muito do carácter de um e doutro. Juntamente com Freitas do Amaral, foi um dos discípulos dilectos de Marcello Caetano, a quem este entregou a regência de Direito Constitucional quando ascendeu à chefia do governo. Marcello dar-lhe-ia outra honra, mais rara ainda: actualizar o Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Com Marcello Caetano no governo, Freitas do Amaral ficaria encarregue do Direito Administrativo, cabendo a Miguel Galvão Teles o Direito Constitucional. Segundo os contemporâneos, Miguel Galvão Teles – ao contrário de Freitas, mais distante e formal – dedicava os intervalos das aulas a jogar matraquilhos com os seus alunos, algo que certamente não seria do agrado do professor doutor Marcello Caetano. Mas nesse gesto singelo revelava-se já o traço mais marcante e cativante da personalidade de Miguel Galvão Teles: o sentido de proximidade aos outros, a paixão do convívio humano, por vezes levada às raias da boémia e do bom viver.

Em 1971, proferiu uma importante conferência na Ordem dos Advogados em que defendia a concentração da competência para a fiscalização da constitucionalidade das leis, uma aspiração da oposição republicana que Marcello Caetano de certo modo consagrara na revisão constitucional desse ano. Ao intervir na Ordem dos Advogados, Miguel Galvão Teles colocava-se do lado onde sempre esteve – o da defesa das liberdades e da justiça – mas apoiava também a pretensão liberalizante do mestre que nunca renegou, mesmo quando aquele conheceu a amargura do exílio no Brasil.

Após o 25 de Abril, e a pedido de Jorge Correia do Amaral, redigiu, no dia 1 de Maio de 1974, o texto-base da Lei nº 3/74, que definiu a estrutura de poder provisória até à aprovação de uma nova Constituição. Neste período, aproximou-se do Partido Socialista e, em Outubro de 1975, será chamado pelo ministro Vítor Crespo a integrar, com Isabel Magalhães Collaço, Jorge Sampaio e Eduardo de Sousa Ferreira uma comissão ad hoc que, a título informal e reservado, acompanhou juridicamente o processo de independência de Angola. Pouco depois, será igualmente chamado a assessorar Vítor Crespo na tentativa da preparação da independência de Timor. Mais tarde, e provavelmente por indicação de Jorge Sampaio, terá um papel fundamental, juntamente com Luís Nunes de Almeida, no apoio jurídico à elaboração, por Melo Antunes, da «contraproposta militar» no âmbito das negociações do 2º Pacto MFA/Partidos. A justo título, integra o núcleo restrito dos pais fundadores da justiça constitucional portuguesa.

Aderiria formalmente ao PS em Fevereiro de 1978, em simultâneo com um conjunto muito vasto de 36 personalidades, como Jorge Sampaio, José Vera Jardim, João Cravinho, José Manuel Galvão Teles ou João Bénard da Costa. Nesse ano, abandonou a regência de Direito Constitucional na Faculdade de Direito, pondo termo à sua carreira académica e dedicando-se quase em exclusivo à advocacia, actividade que já exercia desde 1966 e que o faria ser galardoado, em 2006, com o Prémio Chambers Lifetime Achievement. Como advogado, foi jurista da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, tendo participado nas negociações com a FRELIMO sobre o destino daquela barragem, em conjunto com Jorge Sampaio, António Martins e José Robin de Andrade. E, em 1991, juntamente com Sérvulo Correia, foi um dos advogados que, em representação do Estado português, apresentou no Tribunal Internacional de Justiça (Haia) a acção contra a Austrália que abriu o chamado «caso de Timor Leste».

Em 1985, abandonara o PS e, acompanhando Ramalho Eanes, ingressou no entretanto criado PRD, tendo, por curto espaço de tempo, sido deputado na V Legislatura (1987-1991). Nessa qualidade, participou, com o brilho de sempre, na revisão constitucional de 1989. Regressaria ao PS em 2002, não ocupando, porém, qualquer cargo no seio deste partido.

Miguel Galvão Teles foi membro do Conselho de Estado entre 1982 e 1986 e, desde Fevereiro de 2005, do Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia. Além dos dois volumes de estudos jurídicos publicados em sua homenagem, seria condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, em 1984, e com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, em 2004. Mereceu-as como poucos.

Das últimas vezes que o vi, pediu-me para ir ao seu escritório. Com cautelas que não lhe conhecia, solicitou que ambos deixássemos os telemóveis longe da sala onde nos iríamos reunir. A conversa era a sós, apenas os dois e mais ninguém. Assim foi e será, para sempre.

P.S. Muitos dos elementos constantes deste texto foram-me fornecidos pelo próprio, para uma nota biográfica que sobre ele escrevi destinada à actualização do Dicionário de História de Portugal (no prelo). Desconhecia o biografado – e eu, como é óbvio – que um dia, não muito distante, as informações que generosamente me prestou viriam a ser usadas num texto evocativo da sua memória. Obrigado, Dr. Miguel Galvão Teles.