Conhecidas que são as “Bases​ ​para​ ​convergência​ ​na​ ​Câmara​ ​Municipal​ ​de​ ​Lisboa​ ​entre o​ ​Partido​ ​Socialista​ ​e​ ​o​ ​Bloco​ ​de​ ​Esquerda”, importa perceber como começa o novo ciclo de governo da cidade. E nada como ler a sua redação.

Este “acordo” consiste num conjunto de reivindicações do Bloco de Esquerda ao Partido Socialista, para, em troca, integrar o governo da cidade. Nas áreas da educação, direitos sociais e saúde, que assume como pelouros próprios, para garantir que o Presidente de Câmara assegurará condições ao exercício da governação. Mas também em muitas outras áreas, da habitação aos direitos dos animais, configurando um programa de coligação para Lisboa.

Mas este documento não é um acordo por via da confiança. Pelo seu teor, este é antes um contrato, clausulado, em que “as partes” estabelecem as “bases para a convergência”. Parece um casamento forçado, em que pelo menos uma “das partes” não confia, entra a medo e por um prazo não prorrogável de quatro anos, até às próximas eleições, em que se voltarão a separar.

Um contrato que em parte substancial é pífio, desnecessário, pois quero crer que não será difícil conseguir unanimidade nas reuniões de câmara para assegurar a gratuitidade de manuais escolares, a construção de novas creches, o reequipamento de escolas, a qualidade das refeições escolares, a segurança dos acessos às escolas, o atendimento a vítimas de violência, a promoção da interculturalidade, a promoção do desporto, a construção de centros de saúde e de unidades de cuidados continuados, a sensibilização para a saúde, a reabilitação de bairros municipais, várias das orientações previstas para a revisão do PDM, a extensão da linha vermelha do metropolitano para ocidente ou o incremento da transparência, entre muitas outras medidas.

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Noutros momentos, é um contrato de navegação à vista. “As partes”, “comprometem-se à consulta prévia”, que assim fica assegurada pelos advogados que prepararam o articulado; e “mantêm posições divergentes sobre o financiamento privado do Programa Renda Acessível”, o que afinal não será problema, pois o primeiro concurso ficou deserto e os termos dos cadernos de encargos deste programa não parecem ser atraentes para os investidores.

Mais preocupantes são os momentos de irresponsabilidade que aparentemente a nova maioria irá promover. É irresponsável a forma como é tratado o alojamento local, que carece de regulação mas não de destruição. É irresponsável a aposta no repovoamento da cidade a partir de programas integralmente financiados pelo Município, absolutamente inviáveis de replicar à escala das carências habitacionais da cidade, promotores de guetização e geradores de mais dependência social do Estado. É irresponsável a abordagem às rendas em dívida nos bairros municipais (rendas que já são proporcionais aos rendimentos dos agregados familiares), que instiga o “não pagamos”, que promove a divisão e a injustiça social, que põe em causa os aproximadamente 2.500 planos de regularização de rendas em execução na Gebalis, e que põe em causa o trabalho social realizado caso a caso, coordenado com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e com várias IPSS.

Mas o mais preocupante mesmo é o facto deste contrato ser apenas uma aritmética de favores e não responder às questões centrais e estratégicas da cidade. É omisso em como vai a cidade recuperar os 300 mil habitantes que perdeu nos últimos 35 anos. É omisso na visão estratégica para a economia da cidade. É omisso na visão integrada para a mobilidade, transportes e ambiente. É omisso na assistência aos idosos, para além do betão. É omisso no rejuvenescimento da cidade. É omisso, pasme-se, no combate à pobreza e na promoção do emprego, reduzindo a visão dos direitos sociais à logica bloquista da tarifa social da água, do consumo assistido, do acolhimento LGBT+, do apoio à violência, da multiculturalidade e do desporto.

E é omisso, entre muitas outras matérias, relativamente à extinção da Taxa de Proteção Civil, inconstitucional, revelando o que o Bloco de Esquerda é capaz de deixar cair em troca de um lugar de vereação. Aliás, para quem esteve fora da política durante oito anos, é interessante reencontrar um Bloco de Esquerda transfigurado, que passou de forte partido de reivindicação a pequeno partido do arco da governação.

Em síntese, este contrato para Lisboa é um caderno de reivindicações de um governante não assumido e não uma visão conjunta dos dois partidos para a cidade. O que é uma má forma de começar. Recomendo a todos os Lisboetas a leitura, para memória futura.

Vereador do PSD na Câmara Municipal de Lisboa
Professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa