Miguel Esteves Cardoso insurgiu-se contra quem se dirige à população dizendo “portugueses e portuguesas” em vez de se ficar apenas pelos portugueses. Para Esteves Cardoso “portuguesas e portugueses” não só é “um erro e um pleonasmo” como também “é uma estupidez, uma piroseira e uma redundância que fede a um machismo ignorante”. Gramaticalmente, Esteves Cardoso tem toda a razão. Mas a questão não é gramatical. É a de saber se usar o masculino como neutro é ou não depreciativo para as mulheres. E se queremos ou não continuar a fazê-lo. Eu não sei o que as mulheres sentem quando têm de pedir o cartão de cidadão, mas sei que eu, homem, não gostaria de ter um “cartão de cidadã”.

A língua evolui e não tem de ser por decreto. Algumas das formas tradicionais, que eram correctas até há bem pouco tempo, hoje parecem-nos ridículas. Por exemplo, já ninguém se dirige a uma juíza como Srª Juiz. No Governo, Leonor Beleza foi a primeira mulher a ser secretária e não secretário de estado. Teve de o exigir expressamente ao primeiro-ministro Pinto Balsemão, que, por sua vez, fez o pedido ao presidente Ramalho Eanes. E, no exercício das suas funções, por diversas vezes Leonor Beleza teve de se impor. Nos corredores dos ministérios até comentavam que se ela um dia chegasse a ministro ia ser um sarilho. Mais tarde, o primeiro-ministro Cavaco Silva, sabendo-a torcida, perguntou-lhe logo se preferia ser ministra em vez de ministro. Não sei se Miguel Esteves Cardoso escreveu algum artigo a insurgir-se contra as suas reivindicações, mas tenho, mas tenho quase a certeza de que acharia ridículo que hoje se falasse na ministro Francisca Van Dunem, em vez de ministra. Assim, Leonor Beleza foi a nossa primeira ministra. Já primeira-ministra nunca tivemos. Maria de Lurdes Pintasilgo? Enganam-se. Como se pode ler na imprensa da época, Lurdes Pintasilgo foi primeiro-ministro.

A verdade é que o masculino é muitas vezes usado não por ser neutro, mas por se referir a profissões e cargos tradicionalmente masculinos, como presidente. E, convenhamos, qual a necessidade de a Constituição dizer que as cidadãs eleitoras com mais de 35 anos se podem candidatar a presidente se apenas tivemos presidentes homens? Não admira que apenas preveja candidaturas de “cidadãos eleitores”. Para quê o ruído de cidadãs esganiçadas? Também há cargos tipicamente femininos, como primeira-dama. Por isso é tão estranho ouvir-se falar em primeiro-cavalheiro.

O actual governo optou, e muito bem, por usar uma linguagem neutra no que a cargos e órgãos governativos diz respeito. Mas há uma excepção. O “Conselho de Ministros” continua a ser só de ministros e não de ministros e ministras. Não puderam mudar esse nome porque assim está inscrito na Constituição da República Portuguesa. Claro que Esteves Cardoso argumentará que as ministras também estão incluídas e que seria pleonástico incluí-las explicitamente. Mas continuo na minha. Aquilo está escrito como está porque estes cargos são masculinos. Senão vejamos outras constituições escritas em línguas menos machistas do que a nossa. O inglês é o exemplo mais óbvio. Se se diz “ele” (“he”) está-se mesmo a falar de um macho e se se diz “ela” (“she”) então trata-se de uma fêmea. Além disso, tirando alguns títulos, como rei/rainha (king/queen) ou duque/duquesa (duke/ duchess), é tudo bastante neutro, como presidente (president), pelo que a confusão não existe. Mas o que está na constituição norte-americana?

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Estava eu nos Estados Unidos quando se começou a falar insistentemente de Hillary Clinton para presidente. Já lá vai mais de uma década. Por incrível que nos pareça, houve quem alegasse que era inconstitucional Hillary ser presidente. E porquê? Porque na constituição norte-americana é explícito que o cargo de presidente é para ser exercido por um homem. Não acreditam? Acreditem, logo no Artigo II, onde são listadas as funções do presidente, é explícito: “The executive power shall be vested in a President of the United States of America. He shall hold his office during the term of four years (…) The President shall be commander in chief of the Army and Navy of the United States (…); he may require (…), and he shall have power (…).”. “He”, “he” e “he”. Não há “she”. Por 16 vezes se escreve “ele” e nunca “ela”. E se em inglês é ridículo dizer que o masculino inclui as mulheres, mais não nos resta senão concordar que “ele” apenas está lá porque o cargo era para ser ocupado por um homem. E, honestamente, que sentido faz ter uma mulher como Comandante Suprema das Forças Armadas?

Eu não quero que a minha língua seja um museu machista. Por isso, da mesma forma que evito usar “cigano” ou “judeu” de forma pejorativa, procuro muitas vezes usar a forma masculina e feminina. Há 15 dias, fiquei contente por saber que havia quem apreciasse este esforço. Uma leitora fez-me saber que tinha ficado admirada ao ler no meu artigo “Défices e aldrabices” que o défice estrutural era o que um “homem” quisesse. Esperava que eu tivesse escrito “homem ou mulher”. Expliquei-lhe que, na verdade, estava a pensar num homem: João Galamba. Aliás, na primeira versão do texto, tinha escrito que o défice estrutural era o que um Galamba quisesse. Mudei por ter medo que pensassem que estava a chamar aldrabão a João Galamba.

A língua é uma evolução histórica e, sendo as nossas sociedades historicamente machistas, não admira que seja chauvinista. Mas, sendo “natural”, não quer dizer que não possamos fazer alguma coisa quanto a isso. A história não tem de parar por aqui. Cada um de nós, consciente ou inconscientemente, escolhe se quer empurrar a história para o lado certo ou errado.