De acordo com o Relatório Anual do Programa Prioritário para as Doenças Cérebro-cardiovasculares, todos os anos morrem cerca de 35 mil portugueses de enfarte agudo do miocárdio ou acidente vascular cerebral (AVC). Além do número de óbitos, são muitos os milhares de sobreviventes que ficam com sequelas graves para a vida.
Dados estes números, será muito difícil encontrar algum português que não seja neto, filho, sobrinho ou conhecido de alguém que tenha sido afetado por uma destas situações. Da minha experiência pessoal, dos três avós que ainda tenho, dois encontram-se em situação de grande dependência graças aos AVC que sofreram há alguns anos. A questão que surge sempre que um destes eventos de morte, ou quase morte, acontece com alguém que nos é próximo é quase sempre a mesma: porquê?
Tendo-me essa questão já surgido mais vezes do que gostaria ao longo da minha ainda curta vida, a verdade é que passados alguns anos, o curso de Medicina e o conhecimento científico me deram alguma clarividência. A resposta não tem nada de místico e não está, pelo menos apenas, na religião. Está sim numa série de fatores de risco há muito tempo conhecidos: os maus hábitos alimentares, o tabagismo, o sedentarismo e o excesso de peso. Aquilo que comemos é, de acordo com a evidência científica, o pior de todos eles. A alimentação desadequada é responsável por 15% dos anos de vida saudável perdidos pelos portugueses.
O que estaria disposto a fazer para viver mais um ano em saúde?
A Organização Mundial de Saúde considera que as medidas mais efetivas no sentido de reduzir a carga de doença e a mortalidade precoce dos cidadãos são as relacionadas com a promoção da alimentação saudável. Mais especificamente, de entre as medidas de redução do açúcar, das gorduras e do sal, são as terceiras que têm um impacto mais efetivo.
Segundo os dados do último Inquérito Alimentar Nacional – IAN-AF (2016-2017), cada cidadão consome, em média aproximadamente 8 gramas de sal por dia, sendo que 3 deles são puro excesso. Este quadro contribui para que Portugal tenha uma das mais elevadas prevalências de hipertensão arterial na Europa. Um em cada três portugueses é hipertenso. A hipertensão arterial, provocada pela ingestão de sal em excesso, é o principal fator de risco para os AVC ou enfartes agudos do miocárdio.
Morrem todos os dias cerca de 100 portugueses por doenças cérebro-cardiovasculares, a grande maioria das quais poderiam ter sido evitadas pela alteração de comportamentos, especialmente pela redução do consumo de sal.
Neste contexto surge a questão: se a evidência científica é tão clara porque é que os portugueses continuam a comer sal a mais? A verdade é que, além do sal que adicionamos na comida, a maior quantidade de sal que ingerimos está escondida nos alimentos pré-embalados que integram a nossa alimentação.
A nossa liberdade de escolha nesta área é, afinal, questionável. Alguém é realmente livre quando ingere, a cada ano, mais de 1 quilo de sal em excesso, escondido nos alimentos, sem sequer se aperceber? Tomemos por exemplo um hábito que eu próprio partilho com milhares de portugueses: o gosto por comer batatas fritas de pacote. Para quem analisar as prateleiras da secção das batatas fritas e snacks do supermercado, perceberá rapidamente que a larga maioria tem mais de 1 grama de sal por cada 100 gramas de batatas. Ou seja, na maior parte das vezes, um pacote é suficiente para atingir o limiar diário de sal admissível por dia.
A verdade é que as opções mais saudáveis existem e não são menos saborosas do que as outras. E se assim é, para que serve tanto sal “a mais” contido nas marcas mais populares? O motivo é puramente comercial: tal como o açúcar, o sal provoca dependência e quanto mais sal os cidadãos comerem sem saber, mais dependentes ficarão de determinados alimentos e produtos.
De acordo com o Inquérito Alimentar Nacional, os três principais veículos de sal na dieta dos portugueses são as batatas fritas de pacote, os snacks salgados e, pasmem-se, os cereais de pequeno almoço. Sim! Os cereais de pequeno-almoço que as boas mães insistem que os seus filhos comam antes de irem para a escola, estão carregados de açúcar e de sal. E, afinal, de quem é a culpa? Das crianças? Das mães? Dos produtores de cereais que escondem dezenas de gramas de açúcar e de sal lá dentro? Ou do Estado que não protege os cidadãos dos interesses puramente economicistas dos fabricantes que se sobrepõem à segurança alimentar e à saúde dos consumidores?
Fará então sentido pensar que, se aquilo que a indústria alimentar coloca à nossa escolha nos está a matar de diabetes, enfartes e AVC, as leis dos mercados e a autorregulação da Indústria Alimentar talvez não funcionem assim tão bem no que à promoção da saúde diz respeito.
Mas, quando falamos de segurança e saúde, o povo português costuma ser bastante protetor dos seus direitos. Assim aconteceu com a discoteca Urban, cujo encerramento por determinação do Estado foi aplaudido e apenas criticado por tardio. A segurança e a integridade física dos cidadãos falou mais alto. Por outro lado, face aos surtos infecciosos recentes, tais como o da legionela ou mesmo o sarampo, a população considerou perfeitamente aceitável e justificada a intervenção do Estado, através da intervenção Direção-Geral da Saúde, com vista à proteção da vida dos cidadãos.
De que estamos então à espera para exigir a regulação do sal, açúcar e gorduras em excesso que são adicionados aos alimentos que as nossas crianças comem? O facto de Portugal apresentar uma prevalência de obesidade infantil superior à média europeia deveria, por si só, despertar as consciências.
Hoje os portugueses vivem mais, mas mais doentes. Portugal é um dos países com menor número de anos de vida saudável vividos depois da idade dos 65. Prova disso é o facto de hoje praticamente todos os nossos avós e pais morrerem por complicações de doenças crónicas prolongadas. E, na génese da atual situação está, uma vez mais, a ingestão de sal em excesso. Face a isto, os Estados podem assumir duas posturas: ou continuar a negar o óbvio e nada fazer, tal como alguns insistem em fazer relativamente às alterações climáticas, ou, de uma vez por todas, agir. Antes tarde do que nunca!
Não é muito vulgar encontrar governos que, na área da saúde, invistam em áreas cujos frutos não possam ser colhidos durante a sua legislatura. Mas, justiça seja feita, pelo investimento até agora feito nas áreas da promoção da saúde e prevenção da doença, o atual Governo é uma feliz exceção.
A taxação das bebidas açucaradas, prevista na lei do OE 2017, foi o primeiro grande passo nesse sentido. Esta medida demonstrou-se um verdadeiro sucesso de saúde pública. A Indústria reduziu drasticamente o teor de açúcar dos refrigerantes de forma a ficar abaixo do limiar do escalão de taxação mais elevada. Estima-se, de acordo com os dados da Autoridade Tributária, que tenha existido uma redução de 20-25% na venda das bebidas refrigerantes com maior teor de açúcar, especialmente fruto de uma transferência para as bebidas com menor teor de açúcar. Graças a esta medida, sem se aperceberem, os portugueses ingeriram menos 4.250 toneladas de açúcar através de refrigerantes do que no ano anterior, apesar de os níveis totais de vendas não terem diminuído. Ou seja, continuamos a beber, mas bebemos produtos mais saudáveis.
O próprio representante da Coca Cola em Portugal, Tiago Lima, referiu recentemente em declarações à Lusa: “Acho que o imposto contribuiu para darmos um passo em frente e esta visão que estamos a ter ajuda-nos num mercado, sabendo que o novo imposto é uma realidade, mas cabe-nos a nós adaptar a realidade de a cada mercado” e que, de facto a “nova taxa ajuda.”
Em equipa ganhadora não se mexe! Mas mesmo quando a evidência científica é abundante, mesmo quando os maiores especialistas de saúde pública do nosso país estão de acordo, os nossos deputados nunca deixam de me surpreender, e não pelos melhores motivos.
Talvez o CDS-PP devesse aconselhar-se melhor antes de propor algo tão descabido como a anulação desta medida. Com base nesta experiência de sucesso até agora aplicada apenas aos açúcares dos refrigerantes, pretende agora o Governo que no OE 2018, se alargue este movimento aos três principais veículos de sal da alimentação dos portugueses: batatas fritas de pacote, snacks salgados, cereais de pequeno-almoço e bolachas.
Mais do que uma forma de angariação de fundos para o Estado, prevê-se que este novo imposto funcione como forte incentivo à reformulação dos alimentos por parte da indústria de forma a evitar a taxação. Vamos passar a poder comer os mesmos cereais de pequeno almoço, e as mesmas batatas fritas, mas com menos sal na sua receita. Preveem-se assim grandes ganhos para a saúde dos portugueses em termos de redução da prevalência de hipertensão arterial, diabetes, doenças oncológicas e cardiovasculares.
A inovação prevista para este novo imposto é o facto de todos os alimentos com menos de 1 grama de sal por cada 100 gramas de produto estarem isentos do pagamento deste imposto especial. Portanto, o que se prevê será um movimento generalizado por parte da indústria no sentido de reformular os seus produtos com vista a ficar abaixo do limiar de taxação e desta forma não ter impacto nos consumidores, nem nos produtores, com um ganho em anos de vida saudáveis para os cidadãos. O produto da tributação do sal (ao contrário das bebidas açucaradas) será destinado exclusivamente a medidas de promoção da saúde e prevenção da doença e isso faz toda a diferença.
Talvez faltem mesmo profissionais de saúde e especialistas em saúde pública nos partidos políticos e na Assembleia da República. Caso contrário como será possível explicar que alguns partidos da Assembleia da República estejam contra esta medida? De início, julguei que a explicação residisse nas ideologias. Mas de facto, tal não faz sentido, porque de ideologicamente em comum, o PCP e o CDS devem ter mesmo muito pouco.
Por seu lado, o PSD já se apressou a anunciar o seu voto contra a inclusão da taxação dos alimentos com excesso de sal no OE 2018. Curioso é o facto de ter sido precisamente o anterior Governo o primeiro a propo-la. Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes?
O debate e discussão pública que se tem gerado em torno desta nova taxa tem sido grande. De tal forma que foram já diversas as entidades que tomaram posição em relação à mesma. Se os profissionais de saúde estão a favor da inclusão desta nova taxa no OE 2018. Se os bastonários das Ordens profissionais da Saúde estão a favor da inclusão desta nova taxa no OE 2018. Se os maiores especialistas de Saúde Pública do país estão a favor da inclusão desta nova taxa no OE 2018. E se até os próprios cidadãos veem com bons olhos esta nova taxa (de acordo com a última sondagem que foi feita relativamente a esse tema)….
Resta-nos a nós, cidadãos, esperar que no momento em que esta medida de Saúde Pública for votada, os deputados não se esqueçam de acautelar a vontade da sociedade. Quem vier atrás que feche a porta! E, se tudo falhar, e por isso a prevalência das doenças crónicas continuar a subir e o Serviço Nacional de Saúde se tornar insustentável nós, jovens, cá estaremos para recordar o dia da votação que hipotecou a Saúde do nosso país.
Francisco Goiana da Silva é médico, docente na área de Gestão e Inovação em Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior e atualmente desempenha funções na Secretaria de Estado Adjunta e da Saúde