Roubaram-lhe o sono. Deitava-se, a cama era confortável, a de sempre, mas dormir era mentira. Não conseguia. Uma ideia, um pensamento, insistia em ocupar-lhe o cérebro. Porque uma coisa no seu dia lhe correra mal. “Acabei por perder mais dinheiro. Ele continuava a parar mais remates do que aqueles que eu conseguia marcar”, admitiu, na altura, o revoltado Antonín, já sem dentes para remoer a desvantagem que dizia ter. Por isso pensou. Muito e, depois, mais um pouco ainda. Puxou pela cabeça. Tinha um problema por resolver. E começava com a bola parada.

E na viagem que, de vez em quando, realizava. Era curta. Onze metros apenas, nem um segundo de duração — mas com uma portagem no final que, teimosa, podia bloquear a passagem caso adivinhasse o lado certo. Era coisa séria. “Para tornar as coisas interessantes, costumávamos apostar cerveja ou uma barra de chocolate em cada penálti”, contou Antonín, ao recordar as horas e horas que passava, no relvado, com Zdenek Hruska que, “infelizmente, era um guarda-redes muito bom”.

Ambos moravam em Praga, quando a cidade ainda servia de capital para a Checoslováquia. Estavam juntos no Bohemias e, no final dos treinos, enquanto os restantes iam descansar para o recato do balneário, Antonín e Zdenek não saíam do relvado. Ficavam a treinar penáltis. E Hruska era bom. Parava muitas bolas e Antonín, além de frustrado, ia ficando com a carteira mais leve. Até que, na tal noite sem sono, puxou pela cabeça. “Às tantas apercebi-me que o guarda-redes esperava sempre até ao preciso momento antes do remate para tentar antecipar o sítio para onde iria a bola. E mergulhava um pouco antes de a bola ser chutada para chegar a tempo ao remate”, lembrou, em entrevista à Radio Praha.

Foi só preciso reparar nisto. Até então, Antonín limitava-se a escolher um lado, correr para a bola e rematá-la para o tal sítio. “Decidi que provavelmente seria mais fácil marcar fingindo que ia rematar e, depois, apenas tocar gentilmente na bola, em direção ao meio da baliza”, resumiu o médio, que nunca largava nem chegou a largar o bigode que tinha na cara. “Desta forma, o guarda-redes já teria mergulhado na altura em que a bola fosse rematada e não teria tempo para a defender”, argumentou, feliz, rebobinando os tempos em que, quando deu início à experiência, ela “funcionou às mil maravilhas”. Zdenek caía para um lado e a bola viajava para o meio da baliza.

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Tanto que Antonín chocou contra um novo um problema. “Estava a começar a ficar muito mais gordo porque ganhei de volta todas as cervejas e chocolates”, brincou o homem que, por aqui, e pelo apelido, se tornaria conhecido para quem gosta de ver 22 jogadores, num relvado, atrás de uma bola — era Panenka, Antonín Panenka. Estávamos em 1974 e, dali por dois anos, seria este checo a abrir a pestana de todos os adeptos. O mesmo que, esta terça-feira, 2 de dezembro, sopra 66 velas de aniversário.

Antes, porém, tinha que experimentar a nova técnica. Testá-la a sério. Foi o que fez. “Ao início fi-lo em jogos amigáveis e, depois, tentei uma ou duas vezes no campeonato checo”, disse Panenka, ao descrever as grandes penalidades em que, subtil e enganador, ordenava o pé direito a levantar a bola, com pouca força e para o meio da baliza, enquanto moldava o corpo para fingir que a ia rematar para perto de um dos postos. “Correu tão bem que, caso tivesse um penálti no Campeonato Europeu, resolvi que iria utilizar essa técnica”, sublinhou. O checo tomou a decisão. E, por sorte, ou coincidência, o tal Europeu, o de 1976, colocou-lhe um penálti à frente. Mas só o fez tarde.

Apareceu no final da competição. Surpresa. A Checoslováquia chegava à decisão da competição. Por lá encontrou um gigante que se queria agigantar ainda mais: era a Alemanha, a campeã europeia, em 1972, e do mundo, em 1974. A que, mesmo já sem o bombardeiro Gerd Müller (68 golos em 62 jogos), ainda tinha Franz Beckenbauer, Berti Vogts, Uli Hoeness e, sobretudo, Sepp Maier, o guarda-redes que passou uma carreira a defender a baliza do Bayern de Munique. Era temido. Muito. Sobretudo nos penáltis, aos quais essa final do Europeu, em 1974, chegou.

Um, dois, três e, de repente, já eram oito as grandes penalidades marcadas. Os germânicos falharam e, portanto, o próximo da Checoslováquia, se entrasse, agarraria as mãos dos checos ao caneco. Antonín sabia-o. Sentia a pressão, a importância do momento. E lá foi ele. Estava em Belgrado, num estádio à pinha. “Foi pura sorte que a oportunidade surgisse na final, contra os alemães, que tinham empatado o jogo no último minuto [dos 90’]”, lembrou. Isso ou “a vontade de Deus”.

Era indiferente porque, naquele momento, Panenka teve “1000% de certeza que iria bater o penálti daquela maneira e marcar”. Dito depois, feito antes. O checo afastou-se da bola uns valentes 10 metros, embalou, correu rápido e, no momento do remate, pareceu abrandar e, com jeito, encostou o pé à bola, que voou lentamente para a baliza onde Sepp Maier já estava tombado para o lado direito. A bola entra. Panenka levanta os braços e festeja. A Checoslováquia era campeã europeia de seleções.

Tudo por obra do pensamento “de um génio, ou de um louco”, como chegou a descrever Pelé, o rei dos brasileiros, vencedor de três Mundiais, ao falar deste penálti. Seja um, ou outro, interessa que a bola entrou. “Acho que o Sepp Meier não gostou. Suspeito que, provavelmente, não gosta de ouvir muito o meu nome”, analisou Panenka, em conversa com o site da UEFA, ao ressalvar que nunca teve a intenção de “ridicularizar” o guardião alemão. “Não conheço ninguém que gozaria com uma pessoa quando o Campeonato da Europa estivesse em jogo”, argumentou.

O penálti era arriscado, incomum e atrevido. Tudo isto. Então, onde está o porquê de Antonín o ter batido desta forma? “Era a forma mais fácil e simples de marcar um golo”, respondeu. E quanto a Pelé, o checo até chegou a dizer que “esperava não ser maluco”, portanto, assumia que o brasileiro dissera “bem” de si. Já quanto ao rasto que a sua invenção deixou, não precisou de assumir nada — basta sentar-se no sofá, ligar a televisão e ver quem, desde então, o tem imitado.

Exemplos não faltam. Em 2000, um ainda jovem Rei de Roma ousou tentá-lo na meia-final de um Europeu. E Franceso Totti conseguiu-o, quando bateu desta forma Edwin Van der Sar (mas também já lhe correu mal). Quatro anos depois seria Hélder Postiga, então um novato avançado que desiludira durante uma época, no Tottenham, a fazer o mesmo no Euro em que, nos “quartos”, Portugal superou a Inglaterra, nos penáltis.

Em 2006 apareceu, quiçá, o melhor imitador, quando Zinedine Zidane, ao sexto minuto da final do Mundial, e com Gianluigi Buffon à frente, bateu um penálti como o checo o fizera e viu a bola ainda a tocar na barra antes de entrar. Em 2012, de novo nas meias-finais de um Europeu, foi Andrea Pirlo, cheio de classe, a fazê-lo. Mas também já foi tramado pela brincadeira. E não foi o único.

Todos estes, e centenas de outros, foram marcados de uma maneira — à Panenka. É este o nome que Antonín ouve quando vê alguém a replicar o que a coragem e engenho o deixaram inventar. “Qualquer comentador, em qualquer país, nunca deixa de o descrever como um penálti à Panenka”, garante, ao apontar algo que considera “muito gratificante”. Hoje é presidente do Bohemians 1905, clube do qual, durante anos, o regime comunista checo não o deixou fugir — só sairia com 32 anos para o Rapid de Viena, após 14 anos no clube de Praga. Ainda tem bigode e agora, retirado e com idade para isso, continua com uma barriga saliente. A mesma que foi enchendo, com “cerveja e chocolates”, quando a invenção começou a resultar.