É uma das vozes sonantes do biocentrismo, a teoria que põe os humanos em pé de igualdade com a vida vegetal e os outros animais. Nascido nos subúrbios de Nova Iorque, em 1957, o filósofo David Abram é doutorado em filosofia pela Universidade do Estado de Nova Iorque e viaja por todo o mundo para conferências e entrevistas.

Esta semana, vem a Lisboa, no âmbito do ciclo de programação A 3 Ecologias, do Teatro Maria Matos. Na quarta, 20, às 18h30, na sala principal do teatro, dá uma conferência, com entrada livre, intitulada “Entre o Corpo e a Terra que Respira: Linguagem Selvagem e Ecologia da Experiência Sensível”. Na quinta, 21, participa num debate. De domingo a segunda, 23 a 25, vai dar uma aula prática na Arrábida, cujos lugares já estão esgotados.

Defensor da “ecologia cultural”, Abram também descreve o seu trabalho como “ecologia de proximidade” (depth ecology), ou seja, uma evolução do movimento “ecologia profunda” (deep ecology), iniciado nos anos 70.

Costumam apresentá-lo como ecologista cultural. O que é a ecologia cultural?
O meu trabalho centra-se na relação entre as culturas humanas e as paisagens vivas que rodeiam e sustentam as pessoas. Procuro a ligação entre as pessoas e aos outros animais, as plantas, os elementos terrestres, entre as várias paisagens vivas que nos sustentam e de que fazemos parte.

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Essas paisagens vivas incluem cidades, prédios, estradas, fábricas?
Sem dúvida, embora deva dizer que não sou um citadino, vivo no Novo México, uma zona desértica no sopé dos Montes Sangre de Cristo. Nunca vivi por longos períodos em cidades grandes… Mas, sim, a ecologia cultural tem de tratar as paisagens urbanas. Eu é que não posso dizer que esteja à vontade nesse tema.

Nasceu em Nova Iorque…
Sim, nos subúrbios. Passei ali os primeiros 17, 18 anos da minha vida.

Foi nessa altura que a ecologia apareceu?
A ecologia diz-nos respeito a todos desde que nascemos, porque respiramos, comemos e somos seres vivos. Todos fazemos parte da teia de relações com animais, plantas, ventos, solos, águas. Quando era estudante universitário trabalhava como mágico, fazia truques com moedas e cartas.

Aprendeu com alguém?
Não, era autodidata. Mas era muito bom. Foi uma forma de pagar os estudos. Atuava em bares e restaurantes. Depois do segundo ano de universidade, tirei um ano, não sabia que seria um ano, para viajar como mágico, trabalhar nas ruas, sobretudo na Europa. Viajava sozinho. A dimensão ecológica apareceu quando voltei à universidade e completei os estudos. Foi então que comecei a viajar, ainda como mágico, e fui ter ao sudoeste asiático: Sri Lanka, Nepal e várias ilhas da Indonésia. Queria ver de perto as formas tradicionais de medicina dos feiticeiros indígenas, também conhecidos como xamãs. Estive em pequenas aldeias de regiões isoladas.

E o que é que descobriu?
Não queria viajar como antropólogo, mas como mágico, para conseguir atrair a curiosidade dos feiticeiros. Chamam-se dukuns, na Indonésia, e jhankris, no Nepal. Estas pessoas demonstraram enorme curiosidade por verem um ocidental, de pele branca, que conseguia acompanhá-los. Pedi para trocarmos informações e participei em cerimónias. Eles eram pessoas muito bizarras e o meu interesse começou então a mudar: não só a medicina tradicional, mas a forma como se relacionavam com a natureza. Comecei a perceber que a primeira função dos xamãs não é a cura, embora também o façam. A principal função é a de serem mediadores entre mundo humano e a comunidade de animais e plantas.

Como é que eles fazem isso? Aprendem ou é um dom?
São pessoas muito sensíveis, têm sentidos apurados, o organismo deles é mais permeável e por isso conseguem captar. As sociedades humanas tradicionais entendem que tudo à nossa volta está vivo e desperto. Estão aptos a lidar com um sapo ou uma aranha.

Ou uma pedra?
Uma pedra também. Desde pequenos, começam a gravitar em torno da comunidade, à volta, e vivem na periferia, na fronteira entre a comunidade humana e a comunidade não humana, assegurando-se de que a comunidade nunca retira da terra mais do que aquilo que pode dar à terra. É este o papel deles: assegurar que não há fronteira entre o mundo humano e não humano. São como uma membrana porosa.

Diria que os xamãs têm poderes especiais?
Não há poderes especiais. Nada ali é sobrenatural, os sentidos deles são mais sensíveis do que os da maioria das pessoas. Conseguem ter empatia com os sentimentos das outras pessoas e receber informação dos animais, das plantas, de uma trovoada. Sentem de imediato quando a chuva se aproxima. É uma capacidade humana.

Acha que as sociedades industriais tendem a censurar essa hipersensibilidade?
Não diria assim. É difícil termos a mesma sensibilidade porque na nossa civilização não reconhece que os outros seres estão conscientes à sua maneira.

Por causa da nossa racionalidade?
Não, porque para nós a natureza é composta por objetos inertes e inanimados ou então por processos mecânicos. Vemos que os animais estão vivos, mas, frequentemente, pensamos que o comportamento deles está programado pela sua genética. Não reconhecemos que as plantas e as árvores são seres com experiências idênticas às nossas.

Que palavra ou expressão descreve a hipersensibilidade que atribui aos xamãs?
Penso que hipersensibilidade é uma boa palavra para usarmos no mundo Ocidental. Nas culturais tradicionais, que reconhecem que tudo está vivo, nunca se falaria em hipersensibilidade, porque o dom é amplamente reconhecido pelas suas comunidades. Mas deixe-me esclarecer: quando falo daquilo que está para lá da comunidade humana, não me refiro a algo sobrenatural, de maneira nenhuma. Em rigor, tenho um pensamento materialista.

Visitou essas comunidades no Nepal e na Indonésia nos anos 80?
Exatamente.

Regressou, entretanto?
Não, mas sei que muitas têm desaparecido.

Considera-se um xamã? Aprendeu a ponto de se tornar também hipersensível?
É muito delicado falar disto, porque não sei qual o nível de entendimento que os leitores desta entrevista têm sobre estes temas. Há um certo tipo de espiritualidade no Ocidente a que se chama New Age. Não tenho qualquer interesse nisso, sou até alérgico. New Age designa experiências que passam pela alienação e nos afastam dos nossos sentidos. Como ecologista, isso não me interessa minimamente. Já agora: há pouco utilizei a palavra xamã para que se percebesse melhor, mas, regra geral, evito. Nunca falo em xamanismo, porque levaria as pessoas a acreditar que estes feiticeiros são líderes espirituais, que são venerados, o que não é verdade. Eles estão à margem, vivem em torno da aldeia. Estamos a falar de sociedades animistas, que assumem que tudo fala e tudo está vivo. Penso que eu próprio sempre fui uma criatura hipersensível, mas evito ser visto como exótico ou como uma pessoa especial.

Como é que usa esses conceitos em favor da ecologia? Ou seja, como é que as pessoas que o ouvem podem melhorar as suas vidas a partir dessa abordagem?
A minha preocupação é com a terra. Mostrar às pessoas que elas são interdependentes de muitas outras formas de vida, mas também dos elementos, o vento, a chuva, os solos, os rios. Deixe-me voltar atrás para dizer que se calhar foi um erro meu começar por falar em xamãs. Como ecologista cultural, o que me fascina é a perceção, a ecologia da experiência sensorial. Os nossos sentidos, os olhos, os ouvidos, a pele, podem ser visto como uma cola que nos prende aos sistemas nervosos do ecossistema que nos rodeia. Fascina-me a ecologia da perceção e, também, cada vez mais, a ecologia da linguagem, porque a linguagem influencia profundamente a maneira de vermos e experimentarmos o mundo.

Está a falar da linguagem oral?
Sim.

O que pretende é dar às pessoas novas palavras que lhes permitam entender a natureza de outra forma?
Exatamente. A nossa experiência do mundo é profundamente limitada e constrangida pela maneira como falamos, não tanto pelo vocabulário, mas pela forma como construímos as frases. É uma parte muito importante do meu trabalho.

Parece que está a falar mais de filosofia do que de ecologia.
É ecologia, não tenho dúvidas. Muitas pessoas chamam-me filósofo. Estudei biologia e filosofia. Filosofia significa hoje, no Ocidente, um discurso que trabalha ideias e conceitos, mas apenas do mundo humano. A filosofia tem pouco a dizer sobre a nossa relação com a terra, a gravidade, o clima. Todo o meu trabalho é dirigido a estes aspetos enigmáticos da vida: como interagimos com o ar, a terra, o solo.

Qual será o resultado dessa revolução que propõe?
A ecologia não vai fazer uma revolução mas é urgente.

Concorda com a palavra revolução aplicada ao seu discurso?
Tudo muda muito devagar e de forma silenciosa. Não me parece que uma mudança rápida pudesse acontecer, e no entanto penso que há urgência em mudar. Procuro coisas pequenas e concretas. O meu trabalho nunca estará terminado.

Qual a diferença entre o seu discurso e o de outros ecologistas? O que é que o diferencia da Greenpeace, por exemplo?
Trabalhamos diferentes aspetos do mesmo puzzle. Vejo os ativistas como irmãos e irmãs, não apenas os da Greenpeace. Procuro transformar a perceção das pessoas sobre o mundo sensitivo, não trabalho numa frente política clara. As pessoas pensam na natureza como uma coisa que está lá fora, enquanto a cultura está aqui, na cidade. Isto é obsoleto, temos de deixar cair esta noção.

A alimentação tem uma dimensão ecológica muito importante: o impacto das indústrias alimentares, o efeito dos alimentos na personalidade e na saúde das pessoas. Recomendaria que deixássemos de consumir açúcar e carne?
É fácil dizer isso. Que tipo de açúcares evitamos se comermos fruta? Evitar a carne? São temas muito complexos que poderia desenvolver melhor, mas esta entrevista breve não me permite. Interessa-me a maneira como comemos. Não posso dizer que a regra seja “deixem de comer carne”.