Como todos os que foram crianças e adolescentes nos anos 80, o meu primeiro embate com Bruce Springsteen foi com Born In The U.S.A., ou melhor, com “Dancing in The Dark”, a canção e o videoclip. Na altura não sabíamos que a rapariga anónima do público que subia ao palco era afinal uma modelo e futura atriz chamada Courteney Cox (Friends), ou o que o realizador era Brian DePalma, mas 90% das raparigas que eu conhecia queriam ser aquela miúda a dançar em palco com o Bruce Springsteen e acredito que todos os rapazes treinassem secretamente a coreografia na esperança de isso lhes dar alguma vantagem no jogo do engate e na vida em geral.

[vídeo para “Dancing in the Dark”]

Assim, para mim, como para muitos, e não apenas em Portugal, o primeiro contacto com Bruce Springsteen foi pela via da pop, no auge da sua mística como sex symbol e estrela rock’n’roll. Claro que, a sustentar o que pareciam apenas êxitos do momento, estava um olhar acutilante sobre a América, um talento incrível para escrever canções e uma presença incendiária em palco, explorada de resto também no videoclip de “Born the U.S.A.”, com Springsteen de fita na cabeça, a lembrar Rambo, e a cantar enfaticamente, de punho no ar, que tinha nascido americano. Esta canção talvez seja a mais a conhecida e, ao mesmo tempo, a pior percebida de Springsteen. Ronald Reagan usou-a na sua campanha para a presidência dos E.U.A. em 1984, até ser impedido por Springsteen de continuar. Mais recentemente, Trump tocou-a em algumas ações de campanha como mensagem para Ted Cruz, nascido no Canadá, também sem aprovação de Springsteen.

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É fácil pensar que uma canção chamada “Born In The U.S.A.” seja um hino nacionalista, sobretudo para quem não domina a língua inglesa, mas até a América se esqueceu de ir além do refrão. “Born In The U.S.A.” é sobre o desencanto de um veterano do Vietname que regressa a casa para descobrir que a América não quer saber dele. Springsteen sempre foi mestre a dar voz às frustrações dos heróis perdidos dos Estados Unidos, algo que as suas raízes folk lhe incutiram. De “Lost in The Flood”, no primeiro álbum Greetings From Asbury Park, a “American Skin”, no mais recente High Hopes, ou “Death To My Hometown” em Wrecking Ball (2012), Springsteen nunca deixou de ser uma voz politica e está longe de ser conservador. Falou abertamente contra Bush, apoiou Obama, recentemente cancelou concertos na Carolina do Norte depois de aprovada a chamada “lei da casa de banho” que obriga pessoas transgénero a usar a casa de banho do género com que nasceram e não a do género com que se identificam.

[“Lost in the Flood”, do álbum “Greetings from Asbury Park”, de 1973]

A verdade é que o mundo pode ter descoberto Springsteen com Born in The U.S.A. e canções como “Dancing In The Dark”, “Cover Me”, “I’m on Fire” ou “Glory Days” mas, antes disso, ele já era um herói Americano. Em Outubro de 1975, foi capa da Time e da Newsweek e proclamado o novo Bob Dylan. Tinha carisma, atitude e domínio das palavras para isso. Na altura tinha apenas três álbuns, o ultimo, Born to Run, um dos seus discos definidores, era o primeiro de uma trilogia que continuaria com Darkness in The Edge Of Town e The River, um álbum duplo de 1980, segundo o próprio, uma obra sobre fidelidade e família, que serve de base à atual digressão com a E Street Band e ao espetáculo do Rock In Rio.

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Capa de “The River” (1980)

The River, tal como os seus dois antecessores, é um disco sobre as dores de crescimento, a intensidade, o desespero, a responsabilidade, a compreensão do espaço e do contexto em volta. Intenso e profundo, com zonas de acalmia e correntes rápidas é um dos discos emblemáticos de Springsteen e talvez aquele que mais tem renovado o culto ao longo do tempo, o que explica porque razão é feita uma digressão a assinalar os 35 anos da sua edição original, e porque foi editada uma caixa comemorativa, The Ties that Bind: The River Collection, com quatro discos, dois CD e dois DVD (ou blu ray), o ano passado.

Springsteen sabe que nem todos se atrevem a mergulhar na profundidade deste rio, por isso, já avisou que, nos concertos europeus, vai ser menos fiel ao alinhamento de The River e variar o repertório. Pode até acontecer que toque “Purple Rain” de Prince (fez isso há dias em Barcelona), certamente vão escutar-se “Born to Run” e “Born in The U.S.A.”. Aos 66 anos, Bruce Springsteen continua enérgico, intenso, sedutor, agitador e capaz de nos fazer dançar, até no escuro.

Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3