No início de “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu” (que se estreia esta semana) há uma fotografia com 36 anos da rodagem de “Conversa Acabada” (1981), primeira longa-metragem de João Botelho, onde Manoel de Oliveira interpreta um padre. E é assim vestido que se vê Oliveira a colocar a mão no ombro de Botelho, gesto que hoje se pode interpretar como uma espécie de bênção e que também é símbolo de uma amizade com mais de quatro décadas. A relação iniciou-se em meados da década de 1970 quando Botelho estudava na Escola de Cinema do Conservatório Nacional e concebeu com amigos e colegas a revista “CineMa”. O primeiro número foi dedicado a Manoel de Oliveira, na altura a filmar “Amor de Perdição” (1979) nos estúdios da Tóbis, obra-prima que foi negligenciada no Portugal de então – na altura usou-se a palavra vergonha – e que foi apreciada, segundo as palavras de João Botelho, “de fora para dentro”.

[o trailer de “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”]

João Botelho usa uma expressão curiosa para caracterizar o realizador e amigo: “vanguardismo intuitivo”. A vanguarda é um dos aspetos explorados em “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”, uma carta de amor ao cinema de Manoel de Oliveira e à sua pessoa. Desde os primeiros minutos que João Botelho explica e dá exemplos daquilo que Oliveira lhe ensinou e o que nos pode ensinar. Pode ser visto como uma obra didática, que o realizador também quer mostrar nas escolas portuguesas, “para as crianças conhecerem Manoel de Oliveira, a humanidade, Portugal e despertarem para o cinema”. Antes da estreia, perguntámos ao realizador quais os principais ensinamentos que recebeu do mestre Oliveira.

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Não há dinheiro para filmar a carruagem? Filma a roda, mas filma bem a roda

“O Manoel sempre foi um cineasta do tempo, do movimento, da duração. Do ver e ouvir, nunca da montagem, nunca foi. O Manoel montava muito rápido, era aquilo ou não era. Lembro-me de uma história… um colega nosso disse que precisava de cortar meia-hora do filme e pediu ajuda ao Manoel de Oliveira, que respondeu: ‘então, porque é que o filmou?’ Ele aproveitava tudo o que tinha filmado, montava tudo rápido. Ele fazia a economia do cinema e filmava sempre com os meios que tinha à disposição. Sabia compor, fazia aqueles planos inacreditáveis: está tudo desfocado e de repente, sem mexer a câmara, o ator mete a mão e a mão está focada. Estava tudo colocado para aquele momento. É a utilização de meios possíveis para criar situações.”

O cinema é o modo de filmar

“Ele era generoso e dizia-me: ‘Faça o que acredita, não oiça ninguém. Quando filma, não pense em nada a não ser nas coisas em que acredita’. Ensinou-me uma coisa fundamental e que ainda hoje defendo: o cinema é o modo de filmar, não são as histórias. As histórias para ele eram secundárias. Eram importantes, claro, os romances, as situações, mas era o modo de filmar que mandava. Dizia: ‘Os filmes são histórias, o cinema é o modo de filmar. O cinema não são as histórias.’ Ensinou-me o ponto de vista, que era uma coisa que eu achava estranho, dizia que para cada situação, só havia uma posição de câmara. E eu achava que podia filmar de baixo, de cima, de lado, com os atores a dizerem o mesmo texto. E depois percebi que é o modo de filmar de cada um. A posição ética de cada pessoa. Defendia sempre a ideia da autoria. Isto é um negócio, mas sempre defendeu que nunca filmava para ninguém. Tinha aquela atitude, como quem escreve um livro, compõe uma música. Não é pelo dinheiro, é porque se sente necessidade de fazer isso.”

Mentir, mentir, para chegar à verdade

“Era uma pessoa conservadora na vida, uma pessoa de família, católico, mas sem acreditar, um católico com dúvidas. Filmava de um ponto de vista material, a matéria das coisas. Ele vinha dos Lumière, gostava daquelas coisas: um comboio, uma casa cheia. Ensinou-me muito a história do ponto de vista de cada um, a posição ética, amorosa, de cada situação. Devo-lhe a ideia de um modo de filmar, de que uma pessoa não se vê, do artifício: mentir, mentir, para chegar à verdade. Dizia-me: ‘filme só o que acredite, o que acha que deve filmar. Não ceda, não oiça ninguém. Veja tudo o que está para trás, tudo o que possa vir para a frente. Prostitua-se para arranjar o dinheiro para o filme, prostitua-se para o filme, mas quando filma, nunca, nunca ceda. Faça só que acredita.’ Isto são lições de moral fantásticas.”

A duração tem de ser programada

“‘O Sapato de Cetim’ (1985) é uma obra-prima. Um filme de sete horas que é uma coisa inacreditável. Tem uma versão de quatro que é uma porcaria, porque o tempo dos planos é para uma duração de sete. Vi-o duas vezes. É maravilhoso, juro. Tem planos de dez minutos e de vinte, planos fixos. Quando se reduz parece que falta qualquer coisa, não tem aquela duração que estava programada. E é um filme notável, ele adaptou à letra o Paul Claudel. É teatro filmado, é maravilhoso. Filma barcos, ajeita as ondas… Estava sempre a pensar em soluções de cinema, independente de algumas serem kitsch ou inverosímeis, mas eram ideias de cinema, do modo de filmar.”

Isto é teatro, não é a vida

“Ele não fazia contracena, campos, contra-campos. Na parte final começou a fazer alguns, mas eram muito estranhos. Nunca punha os atores, quando tinham de dizer alguma coisa, a olhar um para o outro. Mandava sempre falar acima da câmara, do lado esquerdo, porque era para inquietar: ‘Vocês estão a falar para uma audiência, não estão a falar um com o outro. Estão a representar, isto é teatro, não é a vida.’ Isto era engraçado nele. Foi um modo que criou e que outros também fizeram, mas ele foi muito coerente nisso, na ideia de que aquilo é o artifício, de que ninguém morre no cinema, de que é tudo falso. Pode fazer um campo hoje e fazer o contra-campo daqui a dois meses e juntá-lo numa fração de segundo. A coisa mais bonita que há no cinema é a elipse, a passagem do tempo. Eu fiz uma, no “Tempos Difíceis” (1988), que era uma menina de seis anos a levantar um lençol e quando puxava o lençol tinha vinte. As pessoas aceitam isto tudo. É como um sonho. O tempo cinematográfico é diferente do da vida.”