Guerra é guerra. E apesar do sentido meramente figurativo atribuído neste início de texto, muitas vezes é mesmo isso: uma guerra. Ainda assim, quando há dois exércitos rivais no futebol português, o normal será sempre que, com o passar do tempo, dos atos e das decisões, um esteja satisfeito com o desenrolar dos acontecimentos. Um, pelo menos. Agora houve uma batalha que foi a exceção à regra – no seguimento do castigo de 113 dias aplicado ao presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, os leões estão indignados… e o Benfica indignado está.

Vamos por partes: que castigo é este, por sinal o maior castigo de sempre a um líder de um clube desde o Apito Dourado? No final de novembro de 2015, na sequência de alguns alegados erros que levaram vários responsáveis do Sporting (além de Bruno de Carvalho, Octávio Machado, Jorge Jesus e Jaime Marta Soares) a criticar não só a arbitragem mas também o líder do Conselho de Arbitragem da altura, Vítor Pereira, o Benfica apresentou uma queixa à Liga por acreditar que “as declarações e as condutas públicas, protagonizadas de forma reiterada ao longo da presente época desportiva se enquadrava na prática de ilícitos disciplinares muito graves e/ou graves”. A partir daí, qualquer outra incidência era junta ao mesmo processo.

Após a apresentação da queixa, e como seria normal, a Comissão de Instrução e Inquéritos (CII) abriu um inquérito disciplinar e, em maio de 2016, seis meses depois, fechou o relatório final, que ilibava Jaime Marta Soares e Jorge Jesus, acusava Bruno de Carvalho e Otávio Machado e colocava a SAD verde e branca a jeito para castigo que seria enquadrado no âmbito do artigo 118 do Regulamento Disciplinar – um ponto muito importante a reter, como explicaremos mais em baixo.

Ainda assim, houve um retrocesso em toda a temática completamente alheia aos dois clubes: em junho, Cláudia Santos, que presidia ao CII, saiu. E Cláudia Viana, que foi ocupar o quadro, agarrou no processo. A ideia de punir Bruno de Carvalho e Octávio Machado manteve-se, mas o enquadramento para o castigo à SAD do Sporting deixou de ser o artigo 118 e passou a ser dois outros artigos do regulamento: 112 e 136.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Contas feitas, Bruno de Carvalho foi suspenso por 113 dias com uma multa de 2.869 euros, ao passo que Octávio Machado apanhou um castigo de 75 dias e uma sanção pecuniária de 1.913 euros. De acordo com o acórdão publicado no site oficial da Liga com o nome de Comunicado Oficial 239 – Publicação de Decisões do Conselho de Disciplina da FPF – Secção Profissional, o presidente do Sporting viu provadas três infrações de lesão de honra e reputação, tal como o diretor do futebol leonino. Como prova foram utilizadas não só declarações públicas mas também artigos de opinião e posts no Facebook (ambos apenas no caso do líder do clube).

Do que se queixa o Sporting?

Após serem conhecidos os castigos, e segundo conseguiu apurar o Observador, os responsáveis do Sporting não demoraram a reagir. Primeira medida: recurso para o Tribunal Arbitral de Desporto (TAD). Segunda medida: manter a entrevista que Bruno de Carvalho iria dar esta quarta-feira à TVI (o que dirá ou não, ou o que poderá dizer ou não, ainda está a ser pensado). Mas não ficará por aqui.

“E vêm falar de dualidade de critérios. O presidente de certo e determinado de clube ofende, insulta e injuria um vice-presidente do Conselho de Arbitragem [n.d.r. João Ferreira] e é castigado com 60 dias. O presidente do Sporting, após meses e meses de ações cometidas por outros que podem ser entendidas por muitos como pressão e chantagem, é punido com 113 dias de suspensão, sendo que o único delito que cometeu foi de opinião”, escreveu o diretor de comunicação do clube, Nuno Saraiva, na sua página oficial do Facebook. Mas os ataques ao Benfica não ficaram por aqui.

“Veremos o que acontece aos que, na semana passada, boicotaram a Seleção Nacional, promoveram e instigaram o clima que conduziu à agressão ao presidente da Mesa da Assembleia Geral do Sporting e desferiram o maior ataque de que há memória às instâncias do futebol português, pondo em causa o seu carácter, a sua honra e a sua dignidade. Nessa altura, para quem ainda possa ter dúvidas, teremos, seguramente, a prova dos nove. Mas uma coisa é aparentemente certa: há quem, no futebol português, pareça querer voltar a um tempo em que a censura era azul. Hoje, a única diferença é a cor do lápis”, rematou.

Há quem, no futebol português, pareça querer voltar a um tempo em que a censura era azul. Hoje, a única diferença é a cor do lápis

Se repararmos atentamente nas declarações, não é propriamente o castigo a Bruno de Carvalho (e a Octávio Machado, já agora) a ser colocado em causa mas sim uma alegada dualidade de critérios. Por isso também, parece óbvio que a história não ficará por aqui – este será apenas mais um capítulo da novela.

De que se queixa o Benfica?

Durante o dia, e ainda antes de ser conhecida publicamente a decisão, era percetível que o Benfica estava desagradado com a atuação do Conselho de Disciplina da FPF. O tempo para decidir o processo era um dos alvos das críticas, mas as notícias que estavam a ser ventiladas a propósito de um enquadramento mais leve em termos de punição para a SAD do Sporting prometiam uma reação. Que surgiu.

“Inqualificável” e “inaceitável” foram algumas das considerações de uma fonte dos encarnados próxima do processo ao Observador. “Não queríamos acreditar quando isso começou a ser falado. Transformar infrações disciplinares graves em leves para depois serem julgadas como prescritas é algo surreal”, explicou uma fonte à Lusa, remetendo para o que estava explicado em cada artigo para justificar a incredulidade da decisão.

Ora, olhando para o enquadramento inicial, a SAD do Sporting poderia ser castigada ao abrigo do artigo 118. Ou seja, e como se pode ver no Regulamento Disciplinar, poderia ver o seu estádio interditado: “Ainda que não intencionalmente, a criação de uma situação de perigo para a segurança dos agentes desportivos ou dos espetadores de um jogo oficial, de risco para a tranquilidade e a segurança públicas, de lesão dos princípios da ética desportiva ou da verdade desportiva ou de grave prejuízo para a imagem e o bom nome das competições de futebol são punidos com a sanção de interdição do seu recinto desportivo a fixar entre o mínimo de um e o máximo de três jogos e a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 250 UC”.

Não queríamos acreditar quando isso começou a ser falado. Transformar infrações disciplinares graves em leves para depois serem julgadas como prescritas é algo surreal

No entanto, esse enquadramento acabou por ser reduzido para os artigos 112 (lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros) e 136 (lesão da honra e da reputação). Que são bem mais leves e passam apenas por sanções pecuniárias. Ou que podem não passar, por terem prescrito. Também Bruno de Carvalho, dentro do quadro em que estava a ser analisado, recebeu a sanção mais baixa.

De recordar que, após ter sido conhecido o desfecho deste processo, existem outros ainda em aberto. E por queixas apresentadas por Benfica e Sporting contra o rival, no seguimento de declarações após os jogos ou entrevistas. Se a marcação é cerrada dentro de campo, torna-se ainda mais impiedosa fora dele.