O ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos inaugurou, nesta sexta-feira, a segunda comissão de inquérito ao banco que tem como objeto investigar as condições da sua contratação. Estas condições foram negociadas entre António Domingues e o Ministério das Finanças em 2016 e o incumprimento de uma delas acabou por resultar na demissão de gestor. Em quatro horas de audição, respondeu a todas as perguntas. Mas as respostas levantaram outras dúvidas.

Isenção da entrega de declarações de património. Domingues não tinha qualquer dúvida

O ex-presidente da Caixa foi categórico nas respostas que deu sobre este tema. Desde que recebeu o convite do ministro das Finanças para liderar o banco, em abril de 2016, colocou um conjunto de condições a Mário Centeno que, do seu ponto de vista, teriam de ser cumpridas para conduzir com sucesso o plano de recapitalização. E entre elas estavam estas duas:

  • Não aceitava ir com o estatuto de gestor público, que é limitativo do que deve ser a autonomia de uma administração de uma empresa como a Caixa;
  • A divulgação de declarações patrimoniais era um problema. António Domingues diz que foi muito claro neste tema, argumentando que teria dificuldades em formar a equipa de gestores com credibilidade internacional com esta restrição. Argumenta que era, ainda, importante para a Caixa passar no teste do investidor privado.

António Domingues explicou que estas condições foram remetidas por escrito num anexo a uma carta enviada ao ministro das Finanças, a 15 de abril, quando aceitou o cargo, em que detalhava qual devia ser o modelo de governo da Caixa compatível com aquele que é aplicado a uma empresa privada em que o Estado não tivesse direitos especiais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Todas as condições foram expostas e apresentadas ao Governo e, no meu juízo, foram aceites. Escrevi a nota porque tinha consciência de que estava a propor alterações fundamentais ao modelo e quis que ficasse escrito para que não houvesse dúvidas”.

Porque não ficou com dúvidas?

“[Formulei esse juízo] na sequência do diálogo que tive com os meus interlocutores e das iniciativas legislativas que saíram do Conselho de Ministros. Fiquei surpreendido quando o tema irrompeu no final de outubro. Não tinha nenhuma dúvida sobre isso e foi uma responsabilidade enorme convidar pessoas para integrar o conselho de administração. Obviamente que pôr os administradores não-executivos a aceitar obrigações declarativas que são publicadas nos dias seguintes nos tabloides punha-os imediatamente de fora. E se o meu objetivo era contratar pessoas com esse perfil…”

O Governo tinha o mesmo entendimento?

“O Governo nunca me respondeu por escrito, mas também nunca disse que não aceitava.”

E mais tarde acrescentou:

“O facto de o Governo formalmente não ter dito nada, que discordava, levou-me a assumir que as partes estavam de acordo. Há o principio de confiança.”

António Domingues afirmou não saber porque é que o Governo, quando aprovou as alterações legislativas em Conselho de Ministros, a 8 de junho, retirou as questões relativas à desobrigação de apresentar declarações de rendimentos e património.

As condições colocadas para aceitar o cargo implicavam a alteração da lei das empresas públicas, por um lado, e do estatuto do gestor público, por outro. “No princípio de junho, o Governo disse-me que a lei das empresas públicas era matéria da Assembleia da República e que, por isso, tinha de ser objeto de discussão legislativa, o que seria feito num momento posterior”, disse, acrescentando que tinha a expectativa de que tal pudesse ser feito mais cedo, de forma mais imediata. Mas “pareceu-me razoável”.

Domingues assume que pensou que as alterações legislativas então aprovadas eram suficientes para o Governo cumprir os objetivos acordados.

“A responsabilidade legislativa é do Estado. Eu disse ao que vinha e esperei que cumprissem com o que acordaram comigo”.

Na verdade, a lei que teria de ser alterada era a de 1983 e referia-se ao controlo da riqueza dos titulares de cargos públicos. Foi ao abrigo desta lei que o Tribunal Constitucional exigiu as declarações de rendimentos, um entendimento que, para o Presidente da República, estaria já claro quando aceitou promulgar o decreto-lei que exclui a Caixa do estatuto do gestor público. Mas, na altura, Marcelo Rebelo de Sousa fala apenas na exceção para a Caixa pagar salários mais altos aos seus gestores, a única polémica que estava na praça pública.

Porque não referiu expressamente a lei de 1983 e o Constitucional nas suas “condições?

Na correspondência trocada entre o gestor e o Ministério das Finanças, a que está na posse dos deputados da comissão parlamentar de inquérito, o tema nunca está expresso.

O gestor não sabe porque não ficou escrito expressamente “Tribunal Constitucional” na carta que enviou ao Governo — no anexo que definiu as condições e onde está referida a dispensa de entrega de declarações. Mas considera que esse entendimento era claro, uma vez que não há mais nenhuma obrigação de divulgação pública de património dos gestores públicos. Existem outras obrigações de entrega de declarações, mas referem-se à Inspeção-Geral Finanças.

Foi, por isso, com “enorme surpresa” que António Domingues recebeu a polémica que rebentou em outubro depois de Luís Marques Mendes ter revelado no comentário na SIC que os gestores da Caixa estavam isentos dessa obrigação. E assume que foi “absolutamente surpreendido”.

Questionado pelo PS, sobre se alguém lhe falou da lei de 1983, pela qual teria sempre de entregar a declaração de património, o ex-presidente da Caixa respondeu que não tem memória.

Domingues defende que o Tribunal Constitucional só notificou os gestores da Caixa para entregarem as declarações depois de ter sido pressionado. Já no final da audição, revela uma conversa informal — não diz com quem — quando ficou a perceber que a alteração do decreto-lei, que retira a Caixa do estatuto do gestor pública, tinha um vício na forma como estava escrito o artigo segundo. Domingues diz que o preâmbulo é muito claro sobre o objetivo de retirar a Caixa dos limites do estatuto de gestor público.

O artigo 2 do decreto-lei 39/2016 explicita os diplomas que são alterados com a sua redação. Refere dois decretos-lei e uma lei, a das empresas públicas, mas omite a famosa lei de 1983, o tal vício de que fala Domingues. Se foi esquecimento — do Governo e dos assessores jurídicos escolhidos por Domingues — ou se foi intencional, é uma das questões que está por responder.

Certo é que a alteração dessa lei teria que passar pelo Parlamento, dando visibilidade ao tema, numa altura em que ninguém falava dele. E sabemos, pelo que aconteceu depois, que a polémica era garantida.

Porque mudou de opinião o Governo?

Luís Marques Guedes pergunta: “Quando ouviu o secretário de Estado dizer que era intencional a retirada da Caixa do estatuto do gestor público, acreditou?

“Não tinha razões para achar que não fosse sincero. Mas a verdade é que o Governo deixou de ter condições políticas para cumprir as condições que tínhamos acordado”. António Domingues explica que concluiu que “tinha deixado de haver condições políticas para cumprir” os compromissos. “Teve consequências negativas para mim, mas houve a preocupação de minimizar os impactos para a Caixa.”

“Dialoguei com os meus interlocutores no Governo e foi desse diálogo que percebi que não havia condições, aliado com a perceção pública, ficou claro que não havia condições políticas”.

Assegurou, ainda, que avisou o Executivo de que havia o risco de demissões na administração da Caixa, Afirma ter feito tudo para o evitar e acredita que o Governo também o terá feito. Afasta, ainda, a ligação entre a sua demissão e a alteração legislativa aprovada pelo PSD, CDS e Bloco de Esquerda, que clarificava a obrigação de os gestores da Caixa divulgarem o seu património. Saiu em novembro para garantir que ficava fechado o aumento de capital e que a nova administração pudesse ainda aprovar as contas de 2016.

Se não há compromissos escritos, nem formais, do Governo, o que está nos SMS?

O teor das mensagens trocadas entre o antigo presidente da Caixa e os membros do Ministério das Finanças ou do Governo, a assumir compromissos de isentar os gestores da Caixa de entregarem a declaração de património, foi o principal rastilho para a criação da segunda comissão parlamentar de inquérito ao banco do Estado, por iniciativa do PSD e do CDS.

CGD. Lobo Xavier diz que há mais documentos para lá dos que os jornais têm apresentado

E quem revelou a existência desses compromissos do lado do Governo, que iriam mais longe do que aquilo que foi assumido nos e-mails e na correspondência trocada entre Domingues e as Finanças, e que já está na posse do Parlamento, foi Lobo Xavier. O comentador e ex-dirigente do CDS defendeu o antigo colega do BPI no programa Quadratura do Círculo, na SIC, e assumiu que falou com o Presidente da República sobre o tema.

No entanto, o nome do advogado e gestor, amigo de António Domingues, só surgiu por iniciativa do deputado comunista. Miguel Tiago questionou diretamente o ex-presidente da Caixa.

Facultou a documentação enviada ao Parlamento ao Lobo Xavier? Não.

António Domingues lembra a resistência que opôs à entrega da documentação pedida na primeira comissão de inquérito e os avisos que fez ao Parlamento para limitar a divulgação da referida informação. Não tinha interesse em divulgar, mas diz que remeteu cópias para o Governo de tudo o que enviou ao Parlamento e que, horas depois de terem chegado aos cinco coordenadores partidários da primeira comissão de inquérito à Caixa, estavam cá fora [revelados pelo jornal Eco].

Mas Lobo Xavier diz que viu os documentos e que pediu autorização para divulgar a sua informação. Autorizou?

“É óbvio que tive conversas com Lobo Xavier ao longo deste processo e partilhei, enquanto amigo, informação sobre como estava a correr o processo.” E reafirma que nunca entregou qualquer informação e nunca lhe foi pedida autorização.

Miguel Tiago insiste:

Lobo Xavier descreve uma profícua troca de e-mails e um conjunto de mensagens. Tem noção de como Lobo Xavier teve acesso a essa informação? Se não foi a si, sabe a quem foi? Não sei que tipo de amizade tem com Lobo Xavier, mas se tivesse visto os e-mails de um amigo e os tivesse mostrado ao Presidente da República, tê-lo-ia avisado”.

A resposta de António Domingues não muda:

“Não partilho SMS com ninguém, quem conhece os meus SMS são apenas os meus interlocutores e eu”. (…) “Nunca entreguei nenhuma documentação a Lobo Xavier como não entreguei a ninguém, a única entidade a quem entreguei documentos foi a CGD”.

António Lobo Xavier é “um amigo de longa data, que tenho muito gosto de ter como amigo e tenho o benefício de ser amigo de uma pessoa tão inteligente”. E fica mais uma pergunta por responder. Quem informou e mostrou documentação ao comentador da SIC?