Será que as crianças ainda leem a Condessa de Ségur? Será que as crianças ainda leem? Se apesar dos seus esforços, as suas crianças se esquivam à leitura, então desligue-lhes a consola de jogos de vídeo, confisque-lhes os telemóveis e leve-as a ver “Os Desastres de Sofia”, de Christophe Honoré, que além de ser um conseguidíssimo filme infantil baseado num clássico da literatura deste género, tem atores e atrizes de carne e osso em vez de personagens criadas por computador. E quem sabe, talvez seja uma boa porta de entrada para a leitura para as suas crianças, que passarão menos tempo agarradas aos Angry Birds e ao Candy Crush nos ecrãs, pequenos ou grandes, e darão mais atenção ao que está registado em papel impresso e foi escrito especialmente para elas.

[Veja o “trailer” de “Os Desastres de Sofia”]

Depois de uma incursão para esquecer pela poesia de Ovídio em “Metamorfoses” (2014), Christophe Honoré mantém-se do lado dos clássicos em “Os Desastres de Sofia”, só que com um público mais novo e menos crescido em mente. Que aliás conhece bem, porque além de realizador, também é autor de livros para os mais pequenos (isto está tudo ligado, como bem dizia o outro). O filme é uma adaptação e uma combinação livre, inteligente, sensível, poética e nem bota-de-elástico, nem a armar ao modernaço, de dois livros de uma trilogia da Condessa de Ségur (nascida Sofia Rostopchine na Rússia) o citado “Os Desastres de Sofia” e a sua continuação, “As Meninas Exemplares”. A heroína é a pequena Sofia, personagem intemporal e universal, e símbolo literário da infância endiabrada.

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[Veja o realizador Christophe Honoré falar do filme]

Permanecendo respeitador da letra e do espírito dos textos, e das lições que encerram (muitas ainda hoje válidas, sobretudo sobre a educação das crianças para serem adultos bons e felizes) Honoré deu-lhes mesmo assim um ar da sua graça, introduzindo momentos musicais de recorte pop (a cargo do seu cúmplice habitual, Alex Beaupain), umas pinceladas de animação tradicional (os animaizinhos, o barco que naufraga no quadro) ou pondo um dos criados de casa dos pais de Sofia a falar directamente para a câmara, mas evitando sempre o excesso anacrónico que seria fatal à credibilidade do filme. Tal como evitou o sentimentalismo de colar com cuspo, sobretudo na segunda parte da fita, quando a pequena Sofia fica órfã e tem que sofrer corajosamente uma madrasta tão ridícula como insensível, Madame Fichini, até conseguir ir viver com a tia e as priminhas que lhe querem todo o bem do mundo.

[Veja cenas da rodagem do filme]

Por falar em Sofia, o realizador acertou em cheio na escolha de Caroline Grant para o papel principal. Ela interpreta o pequeno furacão de traquinices da Condessa de Ségur com toda a naturalidade, alegria, energia e espontaneidade dos seus cinco anos, pondo a incansável Sofia a supliciar a boneca nova, a deixar a criadagem em polvorosa, a dar a beber aos primos a água do cão dizendo que é chá ou a exterminar os peixinhos vermelhos de estimação da sua frágil mãe (a iraniana Golshifteh Farahani), que parece a todo o momento ir desfazer-se em cacos face às travessuras em moto contínuo da filha, e mantendo-a fiel si mesma na felicidade como na adversidade. O restante elenco, graúdo ou crescido, também corresponde em pleno (Muriel Robin, particularmente, espreme todo o sumo à madrasta pirosa, e Anaïs Demoustier encanta na bondosa tia, Madame de Fleurville) e a recriação da França napoleónica é impecável.

E atenção, não percam a ficha técnica final, porque aparecem todos os intérpretes a apresentar-se e uma das pequeninas que faz uma das primas de Sofia mete os pés pelas mãos e esquece-se do nome. Livre de computadores, monstros, personagens fantásticas ou bonecos feitos de Lego, “Os Desastres de Sofia” é, sem hesitações, o melhor filme infantil deste Verão. E o seu único “merchandising” são os livros da Condessa de Ségur.