O presidente da câmara municipal de Lisboa, Fernando Medina, não declarou ao Tribunal Constitucional (TC) ser proprietário de um duplex no centro de Lisboa que adquiriu (em conjunto com a mulher) a 27 de setembro de 2016. De acordo com a escritura que o Observador consultou no Registo Predial, Medina comprou um T4, com dois pisos, na Avenida Luís Bívar, nas Avenidas Novas, por 645 mil euros. Segundo a lei, os autarcas têm que atualizar a declaração de rendimentos sempre que fazem qualquer alteração patrimonial superior a 50 salários mínimos (que totalizavam 26.500 euros em 2016). Ora, a atualização em causa foi claramente superior.

Fernando Medina até entregou uma atualização da declaração de rendimentos a 17 de agosto de 2016, cerca um mês antes de comprar a casa, em que informava o TC que tinha assinado um contrato-promessa de compra e venda. Nessa atualização, não refere o valor total da compra, apenas o valor que deu como sinal. Até aqui, tudo bem: nessa altura, Medina não era ainda proprietário. O problema é que, um mês depois, devia ter feito nova atualização quando consumou a compra — e não a fez. Ou seja, Fernando Medina entendeu que devia informar o TC de que deu um sinal de 220 mil euros e que era “promitente-comprador” de uma casa, mas não de que já era efetivamente proprietário e tinha pago os restantes 445 mil euros. De acordo com a lei, Fernando Medina tinha 60 dias para fazer a actualização. Já passaram 349.

Quando questionado pelo Observador, o presidente da câmara de Lisboa defendeu-se com o facto de ter comunicado ao TC o pagamento do sinal. Para o autarca, “a aquisição do imóvel em questão, através do contrato promessa, foi prontamente comunicada ao Tribunal Constitucional tendo igualmente sido referido que o remanescente seria adquirido com recurso a crédito bancário. Assim, quer a aquisição do imóvel e respetiva identificação, quer a contratação de um empréstimo estão inquestionavelmente declarados ao Tribunal Constitucional.” Ou seja: Medina nem pondera fazer uma retificação à declaração.

Fernando Medina acrescenta ainda que, “não só estes dados constam de uma declaração efetuada, como os dados respeitantes à propriedade do imóvel (presente e anterior), à existência de hipoteca e seu valor constam em registos públicos – o Registo Predial junto da respetiva conservatória — e acessíveis livremente e por qualquer cidadão, confirmando-se integralmente os dados que lá constam.”

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A existência de registos públicos não substitui, porém, a declaração no Tribunal Constitucional — caso contrário, os autarcas não precisariam de declarar os imóveis que têm, já que constam do Registo Predial.

Ainda assim, Medina alega que não está em incumprimento com a lei, já que “é do conhecimento público esta transação, quer decorrente da declaração do Tribunal Constitucional, quer do registo predial feito, pelo que estão totalmente satisfeitos os valores que a norma constante da Lei n.º 4/83 se destina a proteger”. O autarca diz ainda, em resposta às perguntas do Observador: “Como estipula a lei, no final do mandato, que está prestes a acontecer, irei apresentar uma declaração final, refletindo a evolução patrimonial durante o mandato​”.

Mas, afinal, o que declarou Fernando Medina? Na parte da declaração referente ao ativo patrimonial, além de informar ser proprietário de um andar nas Avenidas Novas (a sua antiga casa) e também co-proprietário de vários prédios urbanos e rústicos (em Vila Real, Celorico de Basto, entre outras localidades) decorrentes de heranças, Medina escreve o seguinte sobre a compra que está em vias de acontecer:

“Promitente-comprador de andar sito na Avenida Luís Bívar, nº40- 6B, freguesia de Avenidas Novas, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 1291 da freguesia de S. Sebastião da Pedreira e inscrito na matriz predial urbana da freguesia das Avenidas Novas sob o artigo 1592.”

Medina informa que mãe e sogros pagaram o sinal

Ainda na mesma declaração entregue no Tribunal Constitucional, Fernando Medina faz questão de informar que foi a sua mãe e os sogros que pagaram o sinal no valor de 220.000 euros:

“Até à data foi pago a título de sinal o valor de 220.ooo €, através de cheque de 50.000 € da conta de Maria Helena Guimarães de Medina (mãe do titular) e de cheque de 170.000 € da conta à ordem do titular após transferência de 150.000 € da conta dos pais do cônjuge Stéphanie Soulier Sá Silva (cheque de 29/06/2016 e transferência nos dias imediatamente anteriores).”

Medina dizia ainda que “o restante valor de aquisição será liquidado através de crédito bancário“. No entanto, não dizia qual era o valor da casa. De acordo com a escritura consultada pelo Observador, Fernando Medina e a mulher pagaram 645.000 euros pelo imóvel. Há aqui, no mínimo, um acréscimo patrimonial de mais 445 mil euros, o que justificaria uma nova actualização junto do TC.

A escritura diz ainda que, para comprar a casa, Fernando Medina e a mulher contraíram um empréstimo junto do banco Santander, com a duração de 32 anos, no valor de 517. 600 euros. Mais uma omissão, que deveria ter sido revelada em nova declaração de rendimentos. Na última declaração entregue, Medina referia apenas um crédito habitação anterior (no valor de 313.726 euros), mas não o novo — que provavelmente ainda não estava concluído na altura da última atualização. Quando passou a estar, teria de o declarar na parte da declaração referente ao “passivo”.

Fernando Medina e a mulher compraram a casa a um particular, uma informação que consta da escritura, mas que não é de declaração obrigatória no Tribunal Constitucional. A compra foi mediada pela imobiliária Home Lovers. O que também consta da escritura é que a casa tem dois pisos (sexto e sétimo andar), que tem uma arrecadação situada no piso -4 do prédio e que tem dois lugares de garagem no piso -1 do mesmo prédio.

De acordo com a caderneta predial urbana do imóvel — registada na Autoridade Tributária e à qual o Observador também teve acesso — a casa é um T4, com uma área bruta privativa de 181,9 m2 e uma área bruta dependente de 46,12 m2.

Retificação teria de ser analisada pelo Ministério Público

O que acontece então a Fernando Medina por não ter cumprido escrupulosamente a lei? A primeira coisa que o autarca teria que fazer, depois de detetada a omissão, seria enviar para o TC a indicação de que é proprietário do imóvel, já que houve uma mais-valia patrimonial. O próprio TC poderá — a partir do momento em que sabe que há um ativo patrimonial não declarado — notificar Fernando Medina para retificar a declaração.

Mesmo que Fernando Medina enviasse já mais informações para o TC, a nova declaração teria de ser analisada pelo Ministério Público, que depois decidiria sobre a possibilidade de abertura de um processo administrativo. A lei é clara no artigo 6.º A, quanto à “omissão ou inexatidão”:

“Sem prejuízo das competências cometidas por lei a outras entidades, quando, por qualquer modo, seja comunicada ou denunciada ao Tribunal Constitucional a ocorrência de alguma omissão ou inexatidão nas declarações previstas nos artigos 1.º e 2.º, o respetivo Presidente levará tal comunicação ou denúncia ao conhecimento do representante do Ministério Público junto do mesmo Tribunal, para os efeitos tidos por convenientes.”

Ainda sobre o incumprimento, a lei diz que, em caso de “não apresentação das declarações previstas nos artigos 1.º e 2.º” — que estabelecem, por exemplo, a necessidade de descrever o “património imobiliário”, mas também o “passivo (…) em relação (…) a instituições de crédito e a quaisquer empresas” –, o autarca incorre em “declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos.”

A lei destaca que isso acontece “consoante os casos”. Ou seja, a situação poderia ser mais delicada se Fernando Medina não tivesse declarado que tinha pago um sinal para compra da casa.

O caso do presidente da câmara de Sintra, Basílio Horta — que declarou ter uma conta de 5,6 mil euros que era afinal de 5,6 milhões — também teve de ir para análise do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional.

Basílio declarou ao TC conta de 5,6 mil euros que, afinal, era de 5,6 milhões

A Procuradoria-Geral da República explicou então ao Observador que Basílio Horta acabou por solicitar ao TC “a retificação de duas declarações de rendimentos por si anteriormente entregues, relativas aos anos de 2010 e 2011, por nelas ter detetado um lapso no que concerne ao valor de um dos depósitos aí mencionado”. Na fundamentação, explicou a PGR, o autarca de Sintra deu como “fundamento do pedido de retificação” o “facto de o referido depósito estar indicado, no valor devido, numa declaração posterior, relativa ao ano de 2014, igualmente constante do seu processo de declarações de rendimentos.” A PGR explicava ainda que “o processo de declarações de rendimentos do declarante” iria “posteriormente ao Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, para apreciação, no âmbito da sua normal atividade de fiscalização de processos de declarações de rendimentos de titulares de cargos políticos e equiparados”.