Foram as últimas palavras de Luiz Inácio Lula da Silva no momento derradeiro antes de ser preso. Num discurso de cerca de uma hora, o ex-presidente brasileiro galvanizou a multidão de apoiantes que o recebeu com gritos de “Lula, guerreiro do povo brasileiro” e deu-lhes exatamente o que esperavam: uma reafirmação da sua inocência, a acusação a Moro de protagonizar um processo político e não jurídico, um desfilar das suas credenciais como defensor dos mais pobres e uma série de orientações para o futuro. Que terminou com Lula a ser levado em ombros pela multidão, enquanto tocava o hino político de Chico Buarque anti-ditadura “Apesar de Você”.

Foi um Lula combativo, de palavras duras, que quis deixar como última memória para os seus seguidores o papel que teve na presidência, sublinhando o seu legado que tirou mais de 30 milhões de brasileiros da pobreza. Mas também foi o do homem encurralado, que admitiu entregar-se por não lhe restar alternativa — “Se dependesse da minha vontade eu não iria, mas eu vou. Ou a partir de amanhã vão dizer que estou foragido”, declarou, garantindo contudo que vai de queixo para cima “e peito tufado”.

Estas são algumas das frases mais marcantes do discurso de Lula:

“Sonhei que era possível um metalúrgico sem diploma de Universidade cuidar mais da Educação do que os diplomados”

Um dos pontos fortes do discurso foi o acentuar das origens humildes do líder trabalhista. Lula, torneiro mecânico de profissão, filiou-se no Sindicato dos Metalúrgicos ainda durante o período da ditadura militar e chegou a líder sindical em 1975.

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“Na minha consciência, parte das conquistas da democracia brasileira a gente deve a este Sindicato dos Metalúrgicos a partir de 1978″, disse, perante a multidão que o escutava. “Aqui foi a minha escola. Aqui aprendi sociologia, aprendi economia, aprendi física, química… E aprendi a fazer muita política. Porque no tempo em que fui presidente deste sindicato, as fábricas tinham 140 mil professores que me ensinavam a fazer as coisas. Sempre que eu tinha dúvida, ia para a porta da fábrica perguntar como fazer as coisas.”

Além do seu currículo como sindicalista, Lula puxou também do seu legado enquanto presidente. “Há muito tempo atrás sonhei que era possível mudar esse país, criando milhões de empregos nesse país. Sonhei que era possível um metalúrgico sem diploma de Universidade cuidar mais da Educação do que os diplomados que governaram esse país”, sentenciou, sublinhando que foi o Presidente brasileiro que abriu mais universidades no país.

“Sonhei que era possível diminuir a mortalidade infantil levando feijão com arroz às crianças”, acrescentou. “Se foi esse o crime que cometi, vou continuar sendo criminoso nesse país”, atirou, em jeito de conclusão.

“Não lhes perdoo por terem passado para a sociedade a ideia de que eu era um ladrão”

Sobre o processo que o condenou — o caso do triplex do Guarujá, que os tribunais determinaram ter sido oferecido a Lula pela construtora OAS como forma de suborno para obter contratos públicos para a Petrobrás –, Lula reafirmou a sua inocência.

Eu sou o único ser humano que está a ser processado por um apartamento que não é meu. A Globo mentiu dizendo que era meu, o Ministério Público mentiu dizendo que era meu, o Moro mentiu dizendo que era meu. É por isso que eu sou um cidadão indignado”, disse. “Não lhes perdoo por terem passado para a sociedade a ideia de que eu era um ladrão.”

“Um ladrão não estaria a exigir provas”, defendeu o ex-presidente, que afirmou, contudo, não ser contra a Lava Jato. “Se houver bandido, tem que encontrar bandido e tem que prender. (…) Mas você não pode fazer julgamento subordinado à imprensa.” Acusando o procurador de ter classificado o PT de “organização criminosa” através de um powerpoint, Lula critica a forma como foi conduzido todo o processo: “Quem quer fazer julgamento com base na opinião pública, tire a toga e vá ser candidato!”, sentenciou.

“Eu fico imaginando a tesão da Veja, da Globo. Eles vão ter orgasmos múltiplos”

Para além de atacar o sistema judiciário, o histórico líder do PT também apontou baterias aos media.

“Tenho mais de 70 capas de revista a atacar-me. Tenho milhares de artigos de jornal a atacar-me. Tenho a Record, a Bandeirantes, a Rádio do Interior, a atacar-me. O que eles não se dão conta é que quanto mais me atacam, mais cresce a minha relação com o povo brasileiro.

Um tratamento que o ex-presidente não tem dúvidas em afirmar que contribuiu para a “antecipação da morte da Marisa”. “Foi a sacanagem que a imprensa e o Ministério Público fizeram contra ela. Tenho a certeza. Essa gente não tem filho e acho que não tem alma”, criticou.

Mais à frente, voltou à carga e desta vez com todas as letras: “O sonho de consumo deles é a fotografia do Lula preso. Eu fico imaginando o tesão da Veja, da Globo. Eles vão ter orgasmos múltiplos.”

“Eles não querem o Lula de volta porque, na cabeça deles, o pobre não pode comer carne de primeira”

Lula da Silva articulou com todas as letras um argumento que tem vindo a usar há já algum tempo, o de que o caso judicial movido contra ele tem uma motivação política. O objetivo é só um, diz: “que o Lula não possa ser candidato à Presidência da República em 2018.”

Para Lula, a estratégia terá começado com o impeachment de Dilma — “das mulheres mais injustiçadas que alguma vez ousaram fazer política nesse país” — e tem como objetivo garantir que Lula não poderá regressar ao Planalto. Esse objetivo político está, de facto, praticamente vedado a Lula, já que a Lei da Ficha Limpa impede que um condenado em segunda instância concorra a cargos públicos.

O ex-presidente aproveitou para explicar porque considera em concreto que não querem um novo “Lula Presidente”: “Não querem o Lula de volta porque, na cabeça deles, pobre não pode ter direito. Pobre não pode comer carne de primeira, não pode andar de avião, não pode ir à Universidade.” E deixou uma promessa: “Sairei dessa maior, mais forte, mais verdadeiro e inocente. Quero provar que eles é que cometeram o crime, um crime político.”

“Eu não pararei porque já não sou um ser humano: sou uma ideia”

Com a quase certeza de que a sua candidatura à presidência será rejeitada pelo Tribunal Supremo Eleitoral, Lula ocupou parte do seu discurso a tentar motivar os seus seguidores para a eleição presidencial de outubro, com ou sem Lula. “Tem milhões de Lulas nesse país. Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão a pairar no ar e não há como prendê-las”, disse o ex-presidente. “O meu coração baterá pelo coração de vocês e são milhões de corações.”

“Eu não pararei porque já não sou um ser humano — sou uma ideia”, afirmou. E deu guia de marcha aos apoiantes do PT, muito embora oficialmente o partido continue a dizer que “não há plano B” a Lula: “Vocês daqui para a frente vão virar Lula, andar por esse país e fazer o que se tem de fazer. Eles têm que saber que a morte de um combatente não pára a revolução.”

O programa político foi alinhavado. “Queremos mais casas, mais emprego. Não queremos ver repetir o que fizeram com a Marielle [Franco], o que fazem com os jovens negros na periferia”, afirmou Lula. “Vamos fazer uma nova Constituinte”, foi outra das promessas, acompanhada de ideias como a aposta na Educação, a revogação da lei do petróleo e impedir o encerramento do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social.

No fim, Lula terminou como começou, com elogios a Guilherme Boulos, líder do PSOL, e a Manuela d’Ávila, líder do PCdoB. “Para mim, é motivo de orgulho pertencer a uma geração que está no final dela vendo nascer dois jovens disputando o direito de ser Presidente da República.”

Boulos e Ávila são candidatos à presidência pelos dois partidos de esquerda, mas têm apoiado Lula incondicionalmente. Não há grandes dúvidas de que planeavam canalizar o seu apoio para Lula da Silva em caso de segunda volta disputada pelo petista e por um candidato da direita — particularmente se o adversário fosse o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro. Resta saber como se posicionará o xadrez eleitoral à esquerda agora que Lula, atrás das grades, parece estar definitivamente afastado da corrida.