Estágios atrás de estágios, falsos voluntariados, falsos recibos verdes e salários baixos. São estes alguns dos inimigos comuns dos jovens com formação superior que tentam ingressar no mercado de trabalho. São também temas protagonistas do livro Trabalho Igual, Salário Diferente, de Francisco Fernandes Ferreira. Para o autor, neste Primeiro de Maio, a luta é para que “se cumpra a Constituição e o Código de Trabalho” – isto numa altura em que a “contratação sem termo parece uma utopia para as novas gerações”.

O jornalista freelancer de 35 anos é quem está por trás do “Ganhem Vergonha”, uma plataforma que nasceu em 2013 e que se dedica a denunciar anúncios de emprego que procuram trabalho de graça – ou quase. Centenas de denúncias e milhares de mensagens de seguidores depois, o projeto que conta com mais de 34.500 gostos no Facebook deu origem a um livro, publicado no final de 2017. E esta semana, dia 3, há um novo encontro para discutir o tema (mais info sobre o evento aqui). Desde Setembro que o autor andou pelo país (e fora dele) a apresentar o Trabalho Igual, Salário Diferente. O próximo e último evento do género será Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, na próxima quinta-feira, pelas 14h30.

A vontade de compilar tudo em papel surgiu depois de Francisco ter notado “um padrão nos tipos de abusos”, à vista nos anúncios que se amontoam nos portais de emprego. No total, foram oito os maus costumes realçados no livro. E aquele que fez com que chegassem mais denúncias à caixa de correio do “Ganhem Vergonha” – e que ocupou mais páginas na obra – tem o nome de “estágio”. “Só em Portugal há oito tipos de modalidades de estágio. São uma ótima forma das empresas obterem trabalho a baixo custo ou a nenhum custo”, afirma.

“Trabalho Igual, Salário Diferente”, o livro de Francisco Fernandes Ferreira publicado em 2017

Por isso mesmo, Francisco diz ter “muitas dúvidas” acerca da utilidade desta prática, tendo em conta que “a maior parte das pessoas já trabalha efetivamente no estágio”:

“A pessoa está a aprender, mas está a aprender como aprende uma pessoa que tenha 20 anos de experiência e mude de empresa ou emprego. Esta ideia de que as pessoas começam a trabalhar, mas ainda não têm direito a serem trabalhadores não faz sentido.”

Mas o mais grave, acrescenta, é a procura ativa das empresas por estágios curriculares, que não são remunerados. E, aí, as universidades são cúmplices, argumenta: “Nos últimos anos, a opinião pública promoveu muito esta narrativa do sacrifício, da flexibilidade, do ‘vestir a camisola da empresa’. Foi um discurso hegemónico, até nas faculdades. Na brincadeira, até costumo chamar isto a ‘Cristiano Ronaldização’ das pessoas – é como se o sucesso dependesse só de cada um e como se as pessoas não tivessem integradas numa conjuntura. E as universidades incentivam os alunos a trabalhar de borla em estágios, para fazer contactos, para procurar oportunidades.”

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Um hábito que, na opinião do jovem autor, não beneficia ninguém: “Quando estão a promover trabalho precário, as próprias universidades estão a fazer má publicidade – estão a dizer que o melhor a que os seus estudantes podem aspirar é um trabalho não remunerado.”

“Vergonhas” frequentes nas ofertas de emprego

Avaliando pelas denúncias que a plataforma recebe, a área onde se vê mais ofertas “vergonhosas” é a chamada “TIC” (tecnologias da informação e comunicação), ou seja, os novos empregos criados pela afirmação do mundo digital. O alvo principal, esse, é claro: jovens nascidos nos anos 80 e 90 com formação superior.

Para lá dos estágios, o livro debruça-se sobre os anúncios de falso voluntariado, trabalho especulativo – por exemplo, “empresas que, em vez de contratarem um designer, lançam um concurso para encontrar o melhor logótipo” –, casos de formação qualificada paga com salários muito baixos, falsos recibos verdes, entre outros. Para comentar estes e outros temas na publicação, Francisco convidou o inspetor de trabalho Abel da Costa Ferreira, os deputados José Soeiro, Miguel Tiago, Tiago Barbosa Ribeiro e Rita Rato e vários jornalistas, advogados, ativistas, historiadores e sindicalistas.

Continuamos com uma geração “à rasca”?

Quando esta pergunta se impõe, Francisco não hesita na resposta afirmativa. E o problema, diz, arrasta-se pela falta de “pensamento coletivo” – “Esta foi uma geração que foi convencida que os sindicatos só serviam para benefícios de alguns, que as lutas laborais são uma coisa antiquada. Em 1980, 59% dos trabalhadores eram sindicalizados em Portugal. Em 2010, que é a data dos últimos dados a que tenho acesso, a percentagem não ultrapassava os 11%”.

Mas a responsabilidade deste número tão baixo “não é só dos trabalhadores”. E Francisco volta às TIC, em que os profissionais “estão muitos dispersos, são freelancers ou trabalham sozinhos em pequenas empresas”. Uma realidade que complica a “organização e defesa” dos trabalhadores, adianta.

No trilho traçado até um trabalhador estabelecer um vínculo profissional, ainda há trabalho a fazer. É preciso intervir no setor da oferta e procura de emprego, que está “completamente desregulado”, razão pela qual os portais de emprego não precisam de seguir as leis do código de trabalho nem as da publicidade, relembra. Uma competência que, segundo Francisco, poderia estar nas mãos da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). A razão é simples: “Se uma empresa está a anunciar que vai violar a lei, a ACT devia impedir logo à partida.”

Além disso, o jovem freelancer acredita que deveria ser obrigatório que certas informações estivessem desde logo associadas aos anúncios de emprego, como o nome do empregador, tipo de contrato e respetiva duração, salário associado ao cargo e horário a cumprir. Mas essas boas práticas, explica, nem o Instituto de Emprego e Formação Profissional segue:

“O IEFP tem o único portal público. Os anúncios são todos anónimos – dizem a freguesia e não dizem a empresa. E não faz muito sentido que as pessoas tenham de se candidatar e enviar os seus dados sem saberem para quê. Muitas vezes, os anúncios oferecem salário mínimo para pessoas com grandes habilitações. Eles não violam diretamente nenhuma lei, mas promovem a precariedade.”

Um passo em frente ou o fim

Para já, Francisco ainda não sabe o que vem a seguir. Diz que o “Ganhem Vergonha” chegou a um ponto em que “ou dá um passo em frente ou termina”: “Neste momento gostava de me libertar um pouco disto e queria que o projeto tomasse um rumo próprio, fosse mais autónomo”. O que é complicado, tendo em conta que a plataforma “não tem forma de se financiar”. Ideias, essas, não faltam. “Se isto tivesse outra estrutura, podia dar outro tipo de apoio – informação, apoio jurídico. Estou a tentar perceber o que fazer com isto”, remata.

Lá fora, projetos com o mesmo objetivo que o “Ganhem Vergonha” vão surgindo – prova de que este é um problema maior do que o nosso país. Um exemplo é a revista britânica intern, nascida em 2013 e financiada pelo Kickstarter, que quis promover o debate sobre a cultura dos estágios não remunerados e dar visibilidade ao trabalho de estagiários talentosos de várias partes do mundo. No Brasil, a página do Facebook brasileira “Vagas Arrombadas”, criada no ano passado, está a fazer sucesso, ao associar o humor à recolha de mais ofertas de emprego sem vergonha.