Aqui, já se vendeu peixe e legumes. Obras feitas, o Mercado do Bairro Alto, em Lisboa, reabriu quinta-feira, dia 10 de maio, com uma nova identidade. Chama-se Mercado dos Ofícios e, no lugar das tradicionais bancas de frescos, tem agora as bancadas de trabalho de serralheiros, marceneiros, conservadores, soldadores, ceramistas, encadernadores, entre muitos outros. Ofícios, lá está. Pôr o saber dos artesãos ao serviço dos lisboetas é o principal objetivo do renovado espaço, onde além de ferramentas, máquinas e mestres ao dispor dos mais habilidosos, também há uma agenda semanal de cursos.

Para isso, a Câmara Municipal de Lisboa, impulsionadora do projeto através do Plano Municipal dos Mercados, associou-se à Junta de Freguesia da Misericórdia, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e à Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (FRESS), o parceiro mais visível assim que se entra no mercado. “O papel da fundação é, sobretudo, proporcionar formação em todas as áreas em que normalmente trabalhos. É por isso que temos três espaços: um dedicado a madeiras, outro ao trabalho com metais e um terceiro, misto, com técnicas de marmoreado, douramento e empalhamento”, explica ao Observador Jorge Fonte, formador e assessor do conselho de administração da referida fundação.

A bancada dedicada à marcenaria na novo Mercado dos Ofícios © Armindo Ribeiro/CML

Na prática, o programa do novo mercado divide-se em duas vertentes: às terças, quintas e sábados, os mestres da FRESS dão cursos em cerca de 20 ofícios diferentes, das técnicas mais elementares das oficinas, como marcenaria, serralharia, latoria, pintura de azulejo, gravação e desenho, às mais específicas, entre elas cinzelagem, passamanaria (a técnica de produzir galões e fitas com fio de prata, ouro ou seda), encadernação e a nobre arte da talha (já lá vamos). Dos workshops de três horas aos módulos de longa duração, que podem chegar às 30 horas, os preços também variam. Vão dos 100€ aos 200€.

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Mas às segundas e sextas, o modo de funcionamento é outro. O mercado fica de portas abertas para todos os que queiram trabalhar nas bancadas e usar máquinas e ferramentas em projetos próprios. O papel da FRESS volta a destacar-se. Além de técnicos sempre no local, a fundação colocou alguns dos seus equipamentos no espaço, que os deixa agora ao serviço da comunidade. A utilização é gratuita (vem usa só tem de pagar os materiais), supervisionada por quem mais percebe e requer marcação prévia no site do mercado, que se estima que vá estar online dentro de uma ou duas semanas. Sobra quarta-feira, o dia que ficará por conta de formações internas da Câmara Municipal de Lisboa e da Junta de Freguesia da Misericórdia, embora o final da tarde esteja reservada a eventos mais especiais como pequenas conferências, debates e exposições.

A arte de gravar e decorar couro, pelas mãos de uma artesã da FRESS © Armindo Ribeiro/CML

“A fundação estava à procura de um espaço para se expandir e, tendo em conta a estratégia dos mercados, vimos imediatamente que era a parceria ideal”, afirma Bernardo Gaeiras, diretor das Criativas de Lisboa. “O Bairro Alto era um espaço muito ligado ás artes, tinha essa identidade”, justifica. Quanto os público-alvo, explica que o objetivo é não diferenciar, embora haja dois perfis mais prováveis. “Uns serão os já interessados nestas artes e ofícios, mas também queremos perpetuar estas técnicas e trazer um novo público, um público mais jovem, estudantes, pessoas ligadas às artes e ao design que possam integrar estas técnicas nos seus trabalhos”, conclui. Na câmara, o Plano Municipal dos Mercados está em marcha. Depois de reabilitações de sucesso como foi a do Mercado de Arroios e a do Mercado 31 de Janeiro, há mais na mira. O de Alvalade já está numa segunda fase e devem seguir os mercados de Benfica e dos Olivais.

Numa das novas bancadas de trabalho do Bairro Alto encontrámos Miguel Alonso Duarte. Tem 26 anos e há quatro que se dedica à arte da talha nas oficinas da FRESS. Tal como outros artesãos, vai estar encarregue de dar alguns dos cursos e workshops. “Não é fácil de ensinar. É preciso gostar”, conclui. Ao lado tem partes de uma banqueta império e de uma mesa D. José, feita em pau-santo e é realmente um trabalho de minúcia. Nas oficinas da fundação, o trabalho divide-se em três vertentes: a conservação, como foi o caso do fogão de sala francês do Palácio Marquês de Pombal, que demorou um ano e meio a restaurar, a produção de réplicas de peças que fazem parte do museu da FRESS e dar resposta a encomendas que chegam de todo o lado, de empresas e de artistas e designers, como já aconteceu com Teresa Gonçalves Lobo e Joana Vasconcelos.

Maciel, a latoaria centenária

O único espaço do Mercado dos Ofícios que não está ocupado por uma arte da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva é este, o da Latoaria Maciel. A casa tem mais de 200 anos e Margarida Gamito, atual proprietária, é já a sétima geração a assumir o controlo do negócio. Depois de, em 2014, ter fechado portas na Rua da Misericórdia, onde sempre tinha estado, a latoaria teve de esperar dois anos para receber um novo espaço, na Rua da Boavista, no Cais do Sodré. “Já merecíamos, a teimosia começa agora a dar frutos. A Câmara já tinha dito que ia haver uma recuperação dos antigos mercados e que um deles seria um mercado de ofícios, eu só não sabia qual. Afinal, tive a sorte de ser este, aqui tão pertinho”, afirma Margarida, explicando também que o novo espaço foi cedido a custo zero pela Câmara Municipal de Lisboa.

A bancada da Latoaria Maciel, que ainda hoje continua a produzir novas peças © Fotografia retirada do Facebook

As lanternas e os candeeiros são as coqueluches da casa, pretexto para relembrar que, em tempos, esta família foi a responsável pelas latoarias da casa real portuguesa —  exato, a Maciel é mais velha que a própria República. A loja do Cais do Sodré continua aberta, o novo espaço será essencialmente de trabalho, mas também para dar a interessados e curiosos a oportunidade de pôr as mãos na massa, ou melhor, na lata. “A arte não se deve pagar, deve estar ao acesso de todos. As pessoas precisam de saber o que é latoaria, há muita gente que não sabe. Quero que percebam e, mesmo que não toquem, que tenham a noção do que isto é”, termina.