O filme sobre “vingadores urbanos” (ou “vigilante movie”) é um subgénero do policial de acção que prosperou nos anos 70 e 80. Nele, um cidadão vulgar, decide, depois do assassinato brutal de familiares ou amigos por malfeitores, substituir-se à polícia, ineficaz ou corrupta, e fazer justiça pelas suas próprias mãos. São exemplos deste subgénero “O Exterminador”, de James Glickenhaus (1980), “Vingança de uma Mulher”, de Abel Ferrara (1981) – cuja heroína é uma mulher violada – “Fúria de Vingança”, de Lewis Teague (1982) e em especial “O Justiceiro da Noite”, de Michael Winner (1974), em que Charles Bronson interpreta Paul Kersey, um arquitecto de Nova Iorque que vai vingar à mão armada a morte da mulher e a violação da filha por uma quadrilha, e “limpar” a cidade. O próprio “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, nada nestas águas, embora a um nível cinematográfico e narrativo muito superior.

[Veja o “trailer” de “O Justiceiro da Noite”]

Em “Nunca Estiveste Aqui”, a realizadora britânica Lynne Ramsey vai beber nesse modelo do “vigilante movie” para o “desconstruir” e lhe dar ares “conceptuais”. Joaquin Phoenix interpreta Joe, um veterano da guerra do Iraque e ex-agente do FBI que aluga os seus serviços para recuperar adolescentes desaparecidos ou vítimas de pedófilos. Joe não age de forma mercenária, apenas por dinheiro, nem por indignação cívica ou fúria justiceira, como os heróis dos filmes tradicionais de vingadores urbanos. Fá-lo porque, como nos é mostrado em “flashbacks” confusos que são também “clichés”, foi vítima de violência doméstica, e talvez mesmo molestado sexualmente, e terá cometido ou testemunhado atrocidades no teatro de guerra. Joe faz o que faz porque ficou traumatizado e está a expiar culpas. Este vingador é um sofredor, que até se penitencia asfixiando-se com sacos de plástico.

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[Veja o “trailer” de “Nunca Estiveste Aqui”]

Daqui não viria mal nenhum ao mundo, não se desse o caso de “Nunca Estiveste Aqui” ser chapadamente inverosímil, postiço e amaneirado. Joe é contratado por um importante político novaiorquino para salvar a sua filha menor, prisioneira num bordel pedófilo situado em plena Manhattan, vigiado apenas por dois seguranças e que tem um moço de recados que não pára de entrar e sair  (Lynne Ramsey deve pensar que os espectadores não lêem nem vêem livros e filmes policiais). Joe anda armado só com um martelo (original, mas nada prático para quem se dedica a uma actividade destas) e uma vez cumprida a missão, percebe que se meteu numa daquelas conspirações que envolvem desde a polícia até políticos poderosos e que a sua vida, e as dos que lhe são mais próximos, estão em perigo (o que nos dá direito, mais tarde, a um absurdo funeral aquático).

[Veja a entrevista com a realizadora Lynne Ramsay]

Este anti-“vigilante movie” a armar ao pingarelho de filme de “autor” assinado pela autora de um bastante bom “Temos Que Falar Sobre Kevin”, em 2011, perde-se na descomunal autocondescendência de Lynne Ramsey, no disparate do enredo e na petulância estilística. “Nunca Estiveste Aqui” é praticamente só gesto, poses e tiques, todos eles feridos de presunção. (Uma excepção: a incursão de Joe no bordel pedófilo, mostrada no preto e branco áspero e granuloso das câmaras de vigilância). E custa perceber o que é que o júri de Cannes 2017 viu na interpretação tendência “walking dead” do monossilábico e sonâmbulo Joaquin Phoenix, aqui na sua pior e mais irritante faceta de Marlon Brando do pobre, para a distinguir com o prémio de Melhor Actor. Ao pé dele, o pétreo Charles Bronson de “O Justiceiro da Noite” é um modelo de “overacting”.

[Veja a entrevista com Joaquin Phoenix]

Aliás, a realizadora não faz nada de novo em “Nunca Estiveste Aqui”. A ideia do seu filme já foi tratada em 2007, em “A Estranha em Mim”, de Neil Jordan, onde Jodie Foster personifica uma locutora de rádio que, depois do assassínio do noivo, num assalto que a deixou em coma, tenta exorcisar os seus fantasmas procurando os criminosos nas ruas de Nova Iorque e eliminando-os, bem como quaisquer outros delinquentes que lhe saiam ao caminho.  Já há muito pouca coisa para inventar no cinema, e não é Lynne Ramsay que traz algo de novo para dizer.