Em outubro de 2017, duas médicas e uma enfermeira de Coimbra iniciaram um projeto de voluntariado focado na prestação de cuidados dermatológicos à população sem-abrigo da cidade. Com o nome Saúde sobre Rodas, começaram a dar as primeiras consultas de diagnóstico em abrigos da cidade. Oito meses depois, a iniciativa, que entretanto conseguiu financiamento, percorre quinzenalmente as quatro instituições de acolhimento da cidade.

Longe de ser uma prioridade no apoio dado à população sem teto, ao contrário da comida e do vestuário, o projeto é visto como pioneiro. Depois de um primeiro diagnóstico, a equipa regressa semanas depois para reavaliar cada caso. “Estamos a percorrer todas as instituições aqui de Coimbra e, pelas nossas contagens, vamos conseguir dar resposta a todas as instituições que apoiam este contexto populacional. Em algumas, como é o caso do Farol, já estamos a reavaliar. A reavaliar e a incluir outros utentes que, entretanto, entraram na instituição. É uma população flutuante, muito dinâmica, uns saem, outros entram”, explica Marina Montezuma Vaquinhas, professora na Escola Superior de Enfermagem de Coimbra.

Foi ela a precursora do Saúde sobre Rodas. Em 2009, Marina começou a dedicar tempo à população sem-abrigo, como voluntária de uma outra instituição, a Associação Integrar. Na altura, começou por levar os seus alunos do curso de enfermagem para os giros noturnos, além das intervenções educativas e avaliações feitas em sala. A prática durante até hoje, mesmo depois de ter convidado duas dermatologistas a formarem uma equipa com mais alcance na cidade. “Trabalhava com os sem-abrigo e, de facto, a dermatologia era uma área muito desvalorizada, ninguém ligava e eu identificava muitas micoses e outras lesões de pele. Para mim, a pele é um enigma, mas sempre achei que era importante ter uma amiga da área da dermatologia a integrar o projeto”, conta.

Marina fez o convite a Bárbara Fernandes, dermatologista no IPO de Coimbra, como já tinha feito tantos outros. Chegou mesmo a contar com a ajuda de um higienista, também amigo, nas visitas frequentes à associação. Bárbara não só aceitou, como entendeu o desafio a outra dermatologista, Bárbara Roque Ferreira, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

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No final do ano passado, Bárbara Fernandes concorreu com o Saúde sobre Rodas ao prémio Dermatologist from the Heart, da marca de cosmética La Roche-Posay. No início do ano, o projeto foi selecionado para receber uma bolsa de 10.000 euros. “O prémio viabilizou o projeto de duas maneiras. Por um lado, porque nós temos uma abordagem terapêutica sempre que identificamos uma patologia e, nesse aspeto, permite-nos comprar os medicamentos e vir cá trazê-los. Por outro lado, há uma vertente mais educacional e de promoção de saúde. Oferecemos a cada utente um kit com um gel de banho, um champô, um hidratante, um desodorizante e uma escova e uma pasta de dentes. Sem esse apoio financeiro, evidentemente, não poderíamos fazê-lo”, afirma Bárbara Fernandes.

A começar à esquerda: Bárbara Roque Ferreira, Marina Montezuma Vaquinhas e Bárbara Fernandes © JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

As três voluntárias reconhecem a importância da bolsa, mas admitem também que o projeto continuaria a atuar, mesmo sem o apoio da La Roche Posay. “Assim, podemos fazer estes brilharetes”, conclui Bárbara Fernandes. A atribuição do prémio foi unânime. Na última edição (acontece em Portugal desde 2013), concorram mais de uma dezena de projetos de intervenção social e educativos na área da dermatologia. As ações de sensibilização para o risco de cancro da pele têm dominado as listas de candidatos, mas esta, a primeira a ter os sem-abrigo como população-alvo, não deixou dúvidas ao painel de especialistas responsável pela seleção.

Segundo António Massa, presidente da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, os especialistas da área estão muito mais voltados para a prática de voluntariado do que pensamos. “Há gente disponível e com vontade de fazê-lo. Tentámos desenvolver um projeto dentro da Sociedade, mas foi-nos dito que era difícil porque não havia instalações para observarmos os utentes”, explica.

Mas os esforços do especialista têm ido no sentido de outra população, a dos idosos em lares. Nesses fins de semana, uma equipa que chega a contar com 14 médicos, entre os quais especialistas fora da dermatologia, rumam ao Nordeste Transmontano. “Vamos ver doentes, tratar e resolver problemas. Para mim, a dermatologia é presencial”, afirma. Desde o início dos anos 90 que assim é, de forma gratuita e com os médicos a usarem material próprio. A prevenção do cancro de pele continua a ser um tópico recorrente nos meios rurais, onde a população trabalha anos ao fio debaixo do sol. Em janeiro deste ano, uma equipa de quatro dermatologistas viajou até à ilha de São Jorge, nos Açores, com a mesma finalidade. Durante um fim de semana, mais de 300 pessoas foram tratadas e realizaram-se mais de 50 cirurgias.

No Farol, instituição que pertence à Cáritas de Coimbra, os diagnósticos e avaliações decorrem maioritariamente entre caras já conhecidas. O projeto acompanha apenas utentes, ou seja, indivíduos já institucionalizados, pelo que as intervenções de rua são extremamente raras. Até hoje, a equipa, sempre composta também por estudantes de enfermagem, acompanhou apenas uma ronda diurna da Associação Integrar, destinada a sinalizar situações na Baixa de Coimbra. Em todos os outros momentos, as consultas decorrem entre quatro paredes, respeitando a privacidade de cada utente. A primeira abordagem fica sempre a cargo dos profissionais de enfermagem, sob a supervisão de Marina. Peso, altura, índice de massa corporal, tensão arterial e glicemia são indicadores recolhidos logo no início. Seguem-se os exames das duas médicas de serviço.

No centro de acolhimento Farol, os cuidados primários de saúde dermatológica, como é o caso do creme hidratante, já fazem parte do quotidiano dos utentes © JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“O que mais me marca é a resposta que o doente dá aos cuidados que prestamos, é diferente do hospital. Aqui, há pequenas coisas que são valorizadas de uma maneira muito mais impressionante”, admite Bárbara Roque Ferreira. “É uma continuidade daquilo que já faço e que gosto de fazer. É um contacto com o próximo e, sempre que possível, de uma forma calorosa. Obviamente, tenho noção de que é uma população que, se não viéssemos cá, talvez não tivesse acesso aos serviços”, completa Bárbara Fernandes.

A vida na rua, por vezes mantida durante anos, e a consequente privação de rotinas de higiene torna esta população especialmente vulnerável a patologias cutâneas. “Acho que só ainda não vi patologia tumoral”, acrescenta Bárbara Fernandes. Micose, psoríase, escabiose e calosidades, estas últimas especialmente comuns, dadas as carências de calçado adequado. “Andam muito a pé, usam calçado de plástico, proveniente de donativos e o número, muitas vezes, nem é o certo. Mas até aqui, têm sido patologias ligeiras e moderadas e que, com prescrição médica, temos conseguido resolver”, esclarece a médica. O procedimento é simples. Após o diagnóstico, feito no centro de acolhimento, as médicas passam as receitas e regressam dois ou três dias depois com os medicamentos necessários.

A intervenção do projeto Saúde sobre Rodas no Farol, na Associação Integrar, mas também na Cozinha Solidária e no centro Sol Nascente, ganha contornos ainda mais especiais se pensarmos na dificuldade, por vezes relutância, que esta população vulnerável tem em aceder ao Serviço Nacional de Saúde. “Há duas situações: os que se afastam e que têm muita dificuldade em ir aos serviços de saúde e os que os centros de saúde e os cuidados de saúde primários e que vão ao serviço de urgência só quando existe uma agudização do estado de saúde. É difícil sensibilizá-los para isso, até porque há logo uma barreira, os custos — a medicação dermatológica é cara”, afirma Justina Dias, diretora do Farol.

Utentes e equipa Saúde sobre Rodas no final das consultas © JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Atualmente, só esta unidade de acolhimento conta com 30 utentes em regime noturno e com outros tantos que usufruem de apoio diurno. Os homens estão em maioria, bem como a faixa etária que vai dos 40 aos 51 anos. “Eles ficam muito contentes com as ofertas e com este acompanhamento. A área da saúde, e esta especialidade em concreto, não é muito acessível a estes público vulneráveis. Agora, por exemplo, não faltou um na hora da reavaliação. Normalmente, há um desfasamento entre o problema e o tempo de espera. Isto permitiu dar uma resposta mais rápida do que através do médico de família, por exemplo. Depois de estar seis meses ou um ano à espera de uma consulta, o utente podia já nem estar aqui no centro”, conclui Justina Dias.

Até ao fim deste ano, o Saúde sobre Rodas tem a sua sustentabilidade financeira garantida, com a bolsa de 10.000 euros conseguida em janeiro. Além dos conjuntos de higiene pessoal, que rondam os 30 euros, a verba é ainda canalizada para os medicamentos e para o material utilizado pela equipa, como luvas e lâmpadas de observação. As três protagonistas consideram, por isso, a possibilidade de concorrer a outros apoios, o Prémio de Boas Práticas em Saúde é um deles. A própria La Roche-Posay, não descarta a possibilidade de continuar a apoiar o projeto, mesmo já tendo atribuído o prémio no início deste ano. Bárbara Fernandes conta já ter tido pacientes no seu consultório a perguntarem como podem contribuir. Com ou sem bolsas, o trabalho iniciado por esta enfermeira e por estas duas médicas vai continuar.