Jan Blankers participou no concurso do triplo salto dos Jogos Olímpicos em 1928 mas não foi além do nono lugar na qualificação e ficou fora dos saltos finais. Nos anos seguintes, sagrou-se bicampeão nacional holandês na especialidade mas um incontornável e arreliador problema no tendão de Aquiles acabou por terminar de forma precoce uma carreira que poderia ter ido um pouco mais longe. Tornou-se treinador ao mesmo tempo que colaborava com secções de desporto de jornais. E foi pelo sucesso nesse novo caminho que hoje é recordado, sobretudo desde que conheceu Francina Koen (ou Blankers-Koen), em 1935.

Jan nem era propriamente um grande adepto das mulheres no desporto, pertencendo à data a um grupo ainda grande de pessoas que não se revia muito na partilha de palcos entre géneros nas grandes prova. Francine, ou Fanny, mudou essa visão. E acabou por mudar a sua vida, assim como ele também ajudou a que ela virasse a história do desporto mundial, acompanhando como técnico (e uns mais tarde marido, apesar dos 14 anos de diferença) o maior feito de sempre nos Jogos, há 70 anos.

Nascida em Lage Vuursche, uma pequena província em Utrecht, filha de agricultores que quiseram mudar de vida depois de anos a fio de fracas colheitas (o pai, que fizera lançamento do disco e do peso mais novo, chegou a ser motorista, mantendo a mãe e os irmãos uma pequena quinta na nova casa que ficava nos arredores de Amesterdão), Fanny terminou a primária e tinha dois caminhos: ou ia estudar jardinagem ou ia seguir o curso de costureira. Ao invés, fugiu ao destino que lhe estava traçado e construiu um novo que lhe valeu, entre muitas outras distinções, o prémio de Melhor Atleta do Século XX. E tudo porque, entre os vários desportos que praticou em miúda – esgrima, ténis, patinagem artística e ginástica –, aceitou o convite de um treinador de natação e fixou-se no atletismo, face à falta de figuras na pista perante as várias estrelas holandesas nas piscinas.

Fanny Blankers-Koen praticou esgrima, patinagem, ginástica, ténis ou natação antes de se fixar no atletismo (Getty Images)

Bastaram três corridas para estabelecer o seu primeiro recorde nacional, neste caso nos 800 metros, com apenas 17 anos. E em vésperas de Jogos Olímpicos em Berlim, participa nas qualificações e fica apurada no salto em altura e na estafeta de 4×100, que se realizavam no mesmo dia. Terminou no quinto lugar em ambas (nos 4×100 pela desqualificação da Alemanha), mas ganhou algo que, anos mais tarde, valeria tanto ou mais do que uma medalha: um autógrafo de Jesse Owens, o fenómeno negro que humilhou Hitler e o regime nazi em pleno Estádio Olímpico com quatro ouros entre a velocidade e o salto em comprimento. “Você não sabe quem eu sou, mas eu sei tudo sobre si e ainda tenho um autógrafo seu junto de todos os meus prémios”, disse-lhe mais de três décadas, num reencontro por altura dos Jogos Olímpicos de Munique.

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Fanny começava a dominar em termos nacionais e alcançou dois bronzes nos Europeus de Viena, em 1938. Dois anos depois, e já com recordes mundiais batidos, casa com o treinador Jan Blankers e é mãe pela primeira vez em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial e com um calendário internacional cada vez mais restrito. Não demorou a voltar aos treinos após a primeira gravidez, algo que mudou depois do nascimento de Fanneke, em 1945 – numa altura particularmente conturbada, no seguimento daquele que ficou conhecido como o Inverno da Fome que provocou falta de alimentos básicos em muitas cidades, regressou às pistas apenas sete meses depois. Em 1946, conquistou o primeiro lugar nos 80 metros barreiras e na estafeta de 4×100 metros dos Europeus de Oslo, mas nem por isso deixou de chegar aos Jogos de Londres como “a mãe” que já tinha 30 anos.

Recebi muitas cartas ofensivas [antes dos Jogos], com pessoas a escreverem que deveria ficar em casa com os meus filhos e que não me deviam permitir correr na pista com calções curtos. Um jornalista escreveu mesmo que era demasiado velha para correr e que deveria ficar em casa a tomar conta das minhas crianças”, contou numa entrevista ao The New York Times na década de 80.

Foi exatamente há 70 anos que se começou a escrever uma história ainda hoje sem paralelo no atletismo: a 2 de agosto, após o passeio nas qualificações e nas meias-finais, Blankers-Koen ganhou a medalha de ouro nos 100 metros derrotando a britânica Dorothy Manley e a australiana Shirley Strickland; nos dias 3 e 4, teve as qualificações e a final dos 80 metros barreiras, somando o segundo ouro na corrida mais disputada de todos e resolvida através de photo finish com Maureen Gardner (que até se pensava ter ganho) que valeu um novo recorde olímpico; nos dias 5 e 6, novo passeio nos 200 metros, com o terceiro ouro a chegar com nova melhor marca olímpica na final contra a britânica Audrey Williamson e a americana Audrey Patterson; no dia 7, mesmo partindo sempre de trás, venceu as eliminatórias e a final dos 4×100 metros, alcançando o quarto ouro numa semana. Pelo meio, esteve doente, pediu em lágrimas para voltar a casa e estar com os filhos. Superou tudo. Superou todas.

Foi nessa altura que começou a ganhar alcunhas quase com a mesma cadência com que subia ao lugar mais alto do pódio. Ou era a “Dona de casa voadora”, ou era a “Holandesa voadora”, ou era a “Fantástica Fanny”. Mas o estrelato sempre lhe fez um pouco de confusão, como se percebeu na receção que teve após os Jogos (ou mais tarde com alguns relatos de familiares): tinha à sua espera em Amesterdão um coche com quatro cavalos brancos que percorreu as ruas da capital até ao encontro com a rainha Juliana, que lhe concedeu o grau de cavaleiro da Ordem de Orange-Nassau. “Eu apenas corri mais rápido do que as outras atletas, não consigo perceber o porquê de tanta euforia”, comentou durante a cerimónia.

Holandesa foi distinguida em 1999, em Monte Carlo, com o prémio de Melhor Atleta do Século XX (John Gichigi /Allsport)

Apesar de todos os convites que foi tendo para campanhas publicitárias e patrocínios, o máximo que chegou a fazer foi viajar até aos Estados Unidos e à Austrália para promover o desporto feminino. Tudo por causa das regras então em vigor, tudo por causa do sonho de participar nos Jogos de Helsínquia, em 1952. Antes, nos Europeus de Bruxelas, vencera de novo nos 100, 200 e 80 metros barreiras, ficando-se pela prata nos 4×100. Chegou à Finlândia mas, aos 34 anos, o desfecho foi outro: desistiu nas meias-finais dos 100 metros devido a queimaduras da pele depois de vencer a sua eliminatória de qualificação e não terminou também a final dos 80 metros barreiras, após um toque que lhe quebrou o andamento da corrida logo no início. Em 1955, alcançou o último título nacional, neste caso o 58.º, e na prova de… lançamento do peso.

A morte do marido, em 1977, acabou por lhe mudar o resto da vida, passando a viver na mais modesta localidade de Hoofddorp, onde viria a morrer em 2004, com 85 anos. Anos mais tarde, uma biografia feita através de entrevistas a antigas companheiras, familiares e amigos acabou por revelar o outro lado de uma atleta que, não parecendo, foi sempre muito mais do que a “Dona de Casa Voadora”, como a sua própria filha viria a reconhecer: “Acho que a minha mãe nunca teve muito amor próprio e, por isso, nunca conseguiu dar amor e amizade aos outros. Colocar o braço à volta do ombro, como o meu pai fazia, era algo impossível para ela. A minha mãe só gostava de si quando estava a ser adorada pelos outros”. “Não era apenas aquela dona de casa tímida e simpática. O desporto era tudo para ela e fazia tudo para ganhar. Era nas pistas que procurava o amor próprio”, acrescentou Kees Kooman, autor do “Een Koningin Met Mannenbenen” (“Uma rainha com pernas de homem”).