Começou como sit-rocking com a banda toda a tocar sentada, entrecortado por apontamentos íntimos sussurrados baixinho. Acabou como pop-rock tocado já de pé, o fã Salvador Sobral avistado por perto a cantar já o concerto tinha acabado (diz-se no hip-hop que “real recognise real”), corações derretidos ao alto que isto é O Terno no comando.

Já não vale a pena falar deles como banda promissora, como mais um grupo de grande talento do fértil terreno musical que o Brasil vai desbravando por estes anos (ora oiça-o). Isso era antes de <atrás/além>, o álbum que a banda brasileira liderada por Tim Bernardes editou este ano e que já tinha sido apresentado ao vivo em Portugal, no festival NOS Primavera Sound. Aí soube a muito — grandes canções, claro — e soube a pouco: concerto curto, durante a tarde, e a impressão de que era inevitável revê-los em Portugal num palco maior e num concerto mais longo. Foi assim esta sexta-feira, no Capitólio, em Lisboa, um dia antes da atuação da banda no Festival Para Gente Sentada (Theatro Circo, Braga).

Escrevia-se por aqui, aquando da edição do novo (e quarto) disco do trio brasileiro que começou a tocar em conjunto há dez anos, que “o segredo desta costura está nos belos arranjos” e é isso mesmo. Tim Bernardes, que compõe as canções e todas as letras do grupo, já denotava há muito uma capacidade de narrar em canções histórias e sensações com que toda a gente que já amou, sofreu de amor e se perguntou o que raio anda aqui a fazer identifica-se.

A banda também já tinha toda a coolness ao vivo, as referências todas certas, e no entanto, apesar de o terceiro álbum (Melhor do Que Parece, de 2016) ter uma mão cheia de canções de indiscutível classe, faltava apurar as costuras do início ao fim. <atrás/além> é o momento em que O Terno se agiganta, em que as saudades dos Los Hermanos são arrumadas com graciosidade.

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O Terno esta sexta-feira, no Capitólio, em Lisboa (@ ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR)

A banda passou um ano inteiro a dedicar-se a isto e o efeito é notório: não há nota que pareça estar a mais, não há excesso a retirar ao molde final de cada canção, os crescendos e os sussurros aparecem todos no momento certo. É um dos melhores discos editados este ano, é um dos melhores álbuns oriundos do Brasil dos últimos anos e é um manual de bom gosto que reflete sobre o que é isto de amar em 2019, ser um hipster pós-millenial em 2019, viver num país em que o presidente quer “viver dividido” em 2019, ter de se “bancar” e assumir a vida porque não tarda os 30 estão quase aí (Tim Bernardes, o arquiteto lírico disto tudo, tem 28 anos).

É preciso perguntar que vida é esta e que lições do primeiro quarto de século já aprendemos, assumiu O Terno. É preciso pegar nisso tudo e dar um concerto de que os lisboetas — e também há brasileiros nesta Lisboa — nunca mais se esqueçam, ousou O Terno. No Capitólio, esteve quase, quase…

Nem tudo é perfeito (só quase…) “entre o descontraído e o caprichado”

Três rapazes sentados, todos de branco: um na bateria, um na guitarra, um no baixo. É assim que começa. Sem pressas, que isto é música para confrontar a pressa do presente e se quiserem embarquem vocês nela. Um dos segredos está, obviamente, em Tim Bernardes, apresentado pelos amigos da banda como o tipo que está “na direção disso tudo”.

Os segredos para fazer a diferença estão todos lá: expressar desejos, medos e contradições que são dele mas de muitos mais (quem é que lhe contou a minha história, perguntam tantos), uma voz que prova que afinal as bandas de pop-rock também podem ter ótimos cantores (tão raro e tão bom) e uma noção de harmonias e “costuras” que põe chinelo no pé do pop-rock tradicional e discretas orquestras na cabeça. Tudo redondinho mas tudo elaborado e complexo, “entre o descontraído e o caprichado”, uma espécie de seriedade sorridente ou melancolia romântica resgatada à melhor tradição da música brasileira.

Foi só depois de “Tudo o Que Eu Não Fiz” e “Pegando Leve”, este último single em que se começaram a ouvir as vozes da plateia de um Cineteatro Capitólio praticamente cheio, que a banda se apresentou. A introdução anterior deu um belo mote para o concerto, com as versões a soarem ligeiramente distintas do original: houve mudanças subtis no ritmo, na entrada da voz, que fizeram com que isto não pudesse ser inteiramente karaoke sing-along, mas sem subverter as canções. A introdução conversada foi simples, pela voz de Tim Bernardes, que tínhamos visto antes inclinar-se para trás na cadeira e tirar a sua guitarra da contemplação rumo à efervescência rock: “Muito obrigado e boa noite, Lisboa. Somos O Terno e é um prazer estar aqui e fazer o show <atrás/além> para vocês”.

Tim Bernardes durante o concerto da sua banda O Terno desta sexta-feira, no Capitólio, em Lisboa (@ ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR)

O alinhamento passou, como não poderia deixar de ser, pelas canções do disco novo do grupo — já tinha sido assim no concerto veranil no NOS Primavera Sound —, mas houve espaço para repescar muitos temas ao disco anterior Melhor Do Que Parece, de “Culpa” a “Nó”, de “Volta” a “Minas Gerais”, de “Deixa Fugir” e a “Melhor do Que Parece”. Confirmou-se que as canções do álbum anterior já tinham toda a personalidade e incisão lírica, faltava-lhes só roupagens ainda melhores na produção e nas “costuras”, soam agora mais rodadas por palcos e quilómetros e vida a acontecer.

Confirmou-se, também, que O Terno não vinha fazer um showcase, mas um concerto longo de quase duas horas. O regresso a Lisboa para uma sala maior e com um espetáculo maior — em abril tinham tocado no mesmo espaço, mas com os portugueses Capitão Fausto, preparando uma atuação conjunta no Rock in Rio Brasil; antes, tinham tocado em clubes mais pequenos, com lotação menor — assim o pedia.

As canções iam-se sucedendo — “Atrás / Além”, “Nada / Tudo”, “Pra Sempre Será”, “Eu Vou”, “Profundo / Superficial”, “O Bilhete”, “Passado / Futuro”, “E no final”… — e dávamos por nós a comentar invariavelmente para o lado: “Que estupenda canção”, “grande canção”, “isto é um ótimo tema”. Parecia pop-rock para estádios de futebol se os estádios de futebol fossem frequentados por gente de extremo bom gosto, paciência para não andar a chamar nomes ao árbitro de dois em dois minutos e gosto por confrontar a vida em canções e não em carrinhos a pés juntos. Quase parecia uma banda em ponto de rebuçado, mas já lá vamos ao porquê do “quase”.

A banda tocava sentada, ia do intimismo que pedia “silêncio para cantar” (como cantam neste novo disco) ao rock sentado de volume elevado, da guitarra solitária à guitarra e baixo a chiarem do ruído, luzes todas no vermelho. Falava-se no disco, ouvíamos explicar que “pela primeira vez num disco de O Terno as músicas são do mesmo momento, acho que falam da mesma coisa”, víamos Tim Bernardes dividir-se entre a guitarra e o ocasional piano. Nesses momentos mais ocasionais arrancava sozinho, pouca iluminação (em alguns momentos mais sussurrados do concerto só víamos sombras) e toda sobre ele, a banda só se juntava depois. Ouvíamos a percussão tropical de “Bielzinho”, a guitarra e a voz de Tim Bernardes que tantas vezes começavam por parecer chorosas e afinal estavam só pacificadas, de sorriso na cara perante as dores de crescimento.

Também vimos e ouvimos, porém, o que não queríamos ver e ouvir: graças constantes gritadas na direção do palco (uma vez tem piada, um concerto inteiro é um sintoma de uma sede de protagonismo adolescente), converseta sobre os planos pós-concerto, risinhos em matilha e — aqui sim, finalmente por culpa da banda — uma utilização abusiva e excessiva de sons pré-gravados. Tim Bernardes faria piadas com isso, diria que os sons apareciam porque tinham um “baterista telepático” que foi criado e está a ser “desenvolvido no Brasil para exportação” e que era a telepatia que trazia as cordas todas e a orquestra.

“Biel”, o baterista “telepático” da banda O Terno, segundo o guitarrista, compositor e vocalista do grupo, Tim Bernardes (@ ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR)

Se isto fosse um concerto de hip-hop, por certo causaria choque e indignação tantos sons de violinos a aparecerem vindos sabe-se lá de onde, “isto é um concerto de música ao vivo?!” Nem a indiscutível classe das canções da banda, nem o bom-humor dos seus membros, nem aquele final com a banda de pé (à exceção, claro, do baterista) que resgatou do passado o pop-rock mais gingão para levantar o copo de cerveja no ar, com “Não Espero Mais” a motivar a maior ovação, com “Culpa” a fazer dançar e “Melhor do que Parece” a fazer cantar, atenuou a sensação de ligeira batota.

O Terno já é uma tremenda banda, o concerto já não é de meros principiantes (a sala e o preço dos bilhetes, 25€, assim o indicam) e por isso mesmo talvez fizesse sentido começar a pensar em alterações: ou as canções são alteradas para um registo que permita que sejam integralmente tocadas por quem está em cima do palco, ou se arranjam coros e músicos para tocar tudo tintim por tintim, como nas versões originais. Assim, foi só quase, quase o concerto de consagração que poderia ter sido.