É a confusão total no chamado caso Euro 2016. A juíza de instrução criminal propôs em outubro de 2019 a suspensão provisória do processo para todos os arguidos que tinham sido acusados pelo Ministério Público (MP) do crime de recebimento indevido de vantagem, mas o procurador titular dos autos tomou uma decisão diferente e surpreendente. Recusou tal mecanismo para os representantes da Galp que ofereceram os pacotes de bilhetes e viagens para os jogos do Euro 2016, mas aceitou suspender o processo para os titulares de cargos políticos que beneficiaram dessas ofertas e que estão acusados do crime de recebimento indevido de vantagem. Desde que estes paguem um total de 20 mil euros em multas.

Resultado: as duas sociedades da Galp envolvidas, o seu administrador Carlos Costa Pina e mais seis representantes da petrolífera arriscam-se a ser julgados, enquanto os dois ex-secretários de Estado Fernando Rocha Andrade e Jorge Oliveira, o ex-assessor de António Costa Vitor Escária, a sua mulher Susana Escária e os autarcas Álvaro Beijinha (Santiago do Cacém), Nuno Mascarenhas (Sines), além de Pedro Sousa Matias (ex-chefe de gabinete de João Vasconcelos e atual presidente do Grupo ISQ)  e Luís Ribeiro Vaz (ex-administrador da ANA – Aeroportos de Portugal) deverão ser beneficiados com o arquivamento dos autos.

O procurador Pedro Roque considera que o crime de recebimento de vantagem imputado a representantes da Galp tem “níveis de ilicitude e culpa que só podem ser considerados elevados, nomeadamente os convites endereçados a entidades que se encontravam a apreciar pretensões do Grupo Galp“. O mesmo, no entendimento do magistrado, não se aplica aos políticos que beneficiaram desses convites.

Certo é, contudo, que houve titulares de cargos políticos, como Jorge Seguro Sanches (ex-secretário de Estado da Energia), Fernando Medina (presidente da Câmara de Lisboa) e Pedro Santana Lopes (então provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), além de Paulo Carmona (presidente do Conselho de Administração da EGRPP — Entidade Gestora de Reservas de Produtos Petrolíferos) que recusaram as abordagens e os convites da Galp em 2016. E foram elogiados por isso pela juíza Cláudia Pina, a magistrada do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que teve a titularidade do processo durante a fase de inquérito.

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Estas considerações fazem parte de um despacho emitido a 19 de novembro de 2019 pelo procurador do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa que apenas foi notificado aos arguidos este mês de janeiro. O Observador já tinha questionado a Procuradoria-Geral da República sobre a posição que o MP tinha assumido nos autos mas não obteve uma resposta esclarecedora.

A juíza Anabela Rocha avançou com a instrução, declarando formalmente a abertura desta fase processual para os arguidos que a requereram mas, ao mesmo tempo, recusou uma parte importante das testemunhas que foram apresentadas pelos arguidos.

MP e juíza trocam papéis entre o inquérito e a instrução

Trata-se de um processo confuso. Vamos por partes então: primeiro para explicar que a suspensão provisória de processo é uma espécie de arquivamento provisório que implica um pagamento de uma multa e, após um determinado prazo, passa a definitivo, desde que o arguido não volte praticar o mesmo crime.

Na fase de inquérito deste caso Euro 2016 tinha sido a juíza de instrução Cláudia Pina a recusar esse mecanismo proposto pelo procurador adjunto Pedro Roque. A magistrada defendeu o julgamento de todos os arguidos e o MP foi obrigado a acusar. Porquê? Porque apesar da competência para propor a suspensão provisória de processo na fase de inquérito pertença ao MP, a juíza tem de concordar —sendo que a sua decisão é irrecorrível, como explicou então ao Observador a juíza desembargadora Amélia Correia Almeida, presidente do Tribunal da Comarca de Lisboa.

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Na fase de instrução criminal, que foi requerida em junho de 2019 por 11 dos 18 arguidos do processo, os papéis inverteram-se.

A juíza Anabela Rocha propôs a 31 de outubro de 2019 a suspensão provisória de processo para todos os arguidos mediante o pagamento de uma indemnização total de mais de 116 mil euros. Só a holding da Galp Energia e a Galp Energia SA tinham de pagar uma multa total de 50 mil euros.

O problema é que o MP opõs-se parcialmente à proposta da juíza:

  • Rejeitou totalmente a suspensão provisória de processo para as duas sociedades do Grupo Galp, para o seu administrador Carlos Costa Pina e para os restantes seis representantes da petrolífera. A juíza tinha proposto o pagamento de uma injunção de oito mil euros para Costa Pina e o pagamento total de 50 mil euros de multa para Galp Energia SGPS e Galp Energia SA.
  • Aceitou a suspensão provisória em relação a um segundo grupo de arguidos, entre os quais se inclui Fernando Rocha Andrade, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e ex-vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS, Jorge Oliveira, ex-secretário de Estado da Internacionalização, Vitor Escária, ex-assessor de António Costa, a sua mulher Susana Escária, ex-chefe de gabinete do Ministério da Economia, e os autarcas Álvaro Beijinha (Santiago do Cacém), Nuno Mascarenhas (Sines), além de Pedro Sousa Matias (ex-chefe de gabinete de João Vasconcelos e atual presidente do Grupo ISQ), que deverão ser beneficiados com o arquivamento dos autos.
  • E invocou que um terceiro grupo de arguidos estava a ser prejudicado com injunções da juíza “manifestamente excessivas”, por representarem quase o dobro do que tinha sido anteriormente proposto pelo próprio MP. Por isso, declarou a sua oposição à suspensão provisória do processo. Nesta espécie de zona cinzenta encontram-se João Bezerra da Silva, ex-chefe de gabinete de Rocha Andrade, e Rui Oliveira Neves, jurista e secretário da sociedade Galp Energia SGPS, que acabam por estar numa situação caricata.

Multas para políticos de 650 a 4.800 euros

As consequências desta decisão do MP são várias:

  • Na fase de instrução, a competência para propor a suspensão provisória de processo é da juíza de instrução mas é necessário não só a concordância dos arguidos (o que foi dada), como também o “sim” do MP — enquanto que na fase de inquérito é o contrário: a competência pertence ao MP, mas dependente da concordância do juiz. Ou seja, a fase de instrução tem de avançar.
  •  As duas sociedades da Galp, o seu administrador Carlos Costa Pina, José Sequeira Nunes (chefe de gabinete da Presidência e Comunicação da Galp), Nuno Pinto, Eduardo Guedes Oliveira (responsável pela Área de Representação Institucional do Grupo Galp), Carlos Andrade (responsável pela Área de Investigação, Inovação e Tecnologia da Galp) e José Martinho Correia (diretor-geral da Refinação) deverão ser pronunciados para julgamento. Tudo porque a juíza não poderá ter em conta na sua avaliação da prova com a suspensão provisória do processo.
  • O contrário deverá acontecer com os titulares de cargos políticos com os quais o MP concordou com a suspensão provisória do processo, bastando a cada um deles pagar o valor da respetiva injunção determinada pela juíza. A saber: Fernando Rocha Andrade (4.800 euros), Jorge Oliveira (3.500 euros), Vítor Escária (1.200 euros), a sua mulher Susana (650 euros), Álvaro Beijinha (4.000 euros), Nuno Mascarenhas (3.800 euros), Pedro Sousa Matias (1.000 euros) e Luís Ribeiro Vaz (1.200 euros) deverão ser beneficiados com o arquivamento dos autos.
  • Já o terceiro grupo de arguidos sobre os quais o MP se pronunciou contra os valores “manifestamente excessivos” das injunções propostas pela juíza, o futuro é uma incógnita. Atendendo a que o MP está vinculado ao princípio da legalidade, o procurador titular dos autos terá tentado proteger os arguidos deste terceiro grupo mas o efeito poderá ser o contrário, o que poderá provocar uma decisão contraditória: os autos contra Rocha Andrade serão arquivados, mas o seu chefe de gabinete poderá ser julgado. Tudo dependerá da decisão instrutória da juíza de instrução.

Juíza recusa audição de testemunhas

Para aumentar a confusão, a juíza Anabela Rocha já decretou a abertura de instrução mas recusou a maior parte das testemunhas que foram requeridas pelos arguidos que apresentaram requerimento formal a contestar a acusação do MP.

A juíza recusou ouvir uma boa parte das testemunhas requeridas pela Galp Energia, Carlos Costa Pina, Rui Oliveira Neves, João Bezerra da Silva e Luís Ribeiro Vaz. Entre as testemunhas recusadas encontram-se nomes como Luís Amado (ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e atual presidente do Conselho Geral e Supervisão da EDP), João Talone (ex-presidente da EDP) e Tiago Craveiro (diretor-geral da Federação Portuguesa de Futebol), entre outros.

O depoimento destas testemunhas “não se mostra relevante para a presente fase de instrução”, entende a juíza Anabela Rocha, até porque uma parte delas terão sido indicadas para se pronunciarem sobre “prova de matéria de teor jurídico”.

Rui Patrício, advogado das duas sociedades da Galp Energia, de Carlos Costa Pina e dos restantes seis representantes da petrolífera acusados, já interpôs um reclamação contra a decisão da juíza Anabela Rocha, alegando que as testemunhas que indicou deverão pronunciar-se sobre “matéria factual”, nomeadamente sobre a “adequação social e sua conformidade com usos e costumes existentes às datas dos factos”. Por isso mesmo, o causídico insistiu junto da juíza na audição das testemunhas Luís Amado Carlos Conceição, Mário Ferreira e o jornalista Ricardo Costa.

Já João Medeiros, advogado de João Bezerra da Silva, também apresentou um requerimento em que solicita a reapreciação da situação do seu cliente, visto que o causídico entende que o Ministério Público não está a recusar cabalmente a suspensão provisória do processo. Está, sim, a contestar o valor da injunção.

Texto alterado às 18h23m. Clarificadas as competências do Ministério Público e da juíza de instrução criminal para propor a suspensão provisória na fase de inquérito e na fase de instrução