O processo de compra de vacinas não é, por norma, muito falado, a não ser em caso de falhas de abastecimento. Porém, é um processo complexo e com implicações importantes. A nível mundial, a procura de vacinas supera largamente a oferta. Cerca de 80% da produção vem de cinco grandes laboratórios, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao mesmo tempo, a produção de vacinas é geralmente um processo longo (3 anos em média, exceto para a vacina da gripe em que é de cerca de seis meses). Fazer com que a compra se processe de forma eficaz é, por isso, bastante relevante. Os sistemas nacionais de saúde têm de ser capazes de assegurar o fornecimento de vacinas, garantindo rapidez, qualidade e preço baixo, uma combinação nem sempre fácil de conjugar. Neste contexto, o design dos concursos, isto é, a forma como são organizados, não é um detalhe burocrático, mas um pormenor que pode fazer a diferença entre ter ou não vacinas.

O sistema português de compra de vacinas funciona através de contratos-programa, que contratualizam o fornecimento de vacinas específicas com alguns laboratórios por períodos de 3 anos, estabelecendo um preço máximo à partida. Depois, o estado lança o concurso para a aquisição de vacinas, os laboratórios fazem propostas de preço, optando-se invariavelmente pela mais baixa. Este sistema, que privilegia o preço mais baixo como critério único de escolha, pode ter efeitos contraproducentes, tanto a nível económico como de saúde, avisa o economista Pedro Pita Barros.

Mais gastos e mais doenças preveníveis

No estudo, intitulado Aquisição de vacinas em Portugal: O desempenho dos concursos, Pita Barros analisou 36 concursos, feitos entre 2013 e 2018, para a compra de cinco vacinas: hexavalente, pentavalente, tetravalente, tétano e difteria e gripe. O número de fornecedores variou entre um e cinco. Destes concursos, cinco ficaram sem fornecedor. Um dos mais emblemáticos data de 2018 para a compra da vacina contra a gripe. Ficou deserto, porque o preço de licitação inicial foi demasiado baixo e os laboratórios não tinham condições para fornecer. Para que Portugal pudesse ter vacinas nesse ano, o preço base foi aumentado num novo procedimento. Nesse ano, Portugal arriscou o fornecimento da vacina contra a gripe, por ter aberto este segundo procedimento muito tarde. “De certa forma, o Estado foi eficaz demais, no sentido de preços demasiado baixos terem afastado o interesse das empresas fornecerem o produto”, explica o economista.

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O estudo analisa ainda as consequências da falta de vacinas contra o tétano e difteria em 2018: à medida que as vacinas disponíveis nas instituições de saúde expiravam, não havia vacinas novas disponíveis, e, no final de 2018, o governo viu-se obrigado a comprar 180 mil doses a outros fornecedores, a 10€ por unidade — um preço significativamente superior ao de 3,80€ que o contrato-programa estabelecia inicialmente. Outra das implicações possíveis é o atraso da vacinação, situação que pode originar o aumento de casos de doenças facilmente preveníveis com vacinas, alerta Pita Barros.

Soluções: preço base mais alto e concursos multianuais

Na prática, explica Pita Barros, o Estado tem de encontrar um equilíbrio entre o preço de aquisição mais baixo possível e a garantia de abastecimento. A grande procura de vacinas e o limitado número de produtores, juntamente com o longo e caro processo de produção, fazem com que valha a pena, por vezes, aumentar o preço de base de licitação para garantir a sustentabilidade dos fornecedores e fomentar a concorrência — o que pode depois gerar preços mais baixos, adianta.

Outra solução apontada é o uso de concursos multianuais, para garantir aos fornecedores um horizonte temporal alargado e previsibilidade, o que constitui uma base de segurança dos laboratórios. “A ideia é dar uma maior certeza de participação no mercado, dado o ciclo de produção das vacinas também ser multianual”, explica. Estes concursos deveriam idealmente coincidir com os tempos de produção das vacinas, o que ajudaria os laboratórios a planearem melhor o fornecimento. Estas iniciativas permitiriam ainda diminuir o custo de manutenção de vacinas em stock, em cadeia de frio, que são elevados.

Divisão em lotes assimétricos dá mais garantias

Outra das sugestões apontadas, e já implementada pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) — entidade que leva a cabo a compra das vacinas portuguesas —, é a da divisão dos concursos em lotes assimétricos, uma proposta feita num estudo de Fernando Branco, também docente da Universidade Nova Business of Economics. A divisão por lotes significa que em vez do Estado propor a compra de 100 vacinas, as divide em grupos menores: dois lotes de 50 ou três lotes de 50-30-20, por exemplo. Isto permite evitar concursos desertos, uma vez que garante a presença de vários fornecedores. “Mas se tiver duas empresas e dois lotes iguais, o elemento de concorrência desaparece totalmente, a favor da segurança de abastecimento. A proposta deste estudo conduzido por Fernando Branco é ter lotes assimétricos, como forma de conseguir um melhor equilíbrio entre segurança de abastecimento (pelo menos duas empresas têm a certeza de fornecer alguma quantidade) e concorrência em preços — é melhor ganhar o lote maior, e, para isso, tem de se oferecer um preço mais baixo”, explica Pita Barros.

A aplicação deste sistema tem permitido a Portugal afirmar-se como caso de sucesso na aquisição internacional de vacinas, como foi salientado na recente Jornada Luso Espanhola sobre Contratação e sustentabilidade – o caso das vacinas, que teve lugar em Madrid, no dia 27 de fevereiro, e contou com a participação de membros da SPMS e de Pedro Pita Barros.