Uma estudante lisboeta de 24 anos criou no início de 2020 uma página na rede social Instagram onde divulga imagens e histórias da arte medieval portuguesa e tem vindo a chamar a atenção de um número crescente de utilizadores. Inês Abreu diz que a Idade Média Pop, assim se chama a página, pretende chegar a um público jovem não-especializado, que não se revê na maneira clássica de divulgar a história, e garante que os conteúdos, além de originais, têm rigor científico. Mas a linguagem é contemporânea.
“Arquivo digital de aluna de mestrado de arte medieval que coleciona igrejas, santos e outras gemas do património medievo português”, lê-se no cabeçalho da Idade Média Pop, que apesar de estar no início contava esta semana mais de mil seguidores, com publicações recentes a rondar 300 likes. Ao Observador, Inês Abreu informa que está a preparar uma tese de mestrado em História da Arte, com orientação da professora Carla Varela Fernandes, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova — onde em 2017 terminou a licenciatura, que aliás a levou a fazer um estágio no departamento de escultura do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
Vê a presença nas redes sociais como uma oportunidade de trabalho e caso a popularidade continue a crescer pensa vender este modelo de comunicação a instituições ou até à imprensa.
“O grande objetivo é alcançar um público mais jovem, provavelmente millennial [nascidos entre 1980 e meados da década de 90], porque a divulgação da história da arte e da história em geral está muito parada no tempo”, analisa. “Não evoluiu muito desde os programas de José Hermano Saraiva na televisão. A linguagem é muito conservadora e demasiado técnica, não consegue atingir um público mais jovem. Mesmo as páginas de instituições museológicas portuguesas têm alguma dificuldade em usar referências culturais que pessoas da minha idade percebam e nas quais se revejam.”
Uma das publicações mais recentes fala sobre uma estrela de David na fachada da Sé de Lisboa: “Parece ser testemunho da utilização deste símbolo em contextos não-judaicos, nomeadamente cristãos, pelo seu significado mágico e de talismã protetor”, lê-se. Outra publicação, mais antiga, exibe o pormenor de uma escultura, com este texto a acompanhar: “Na exposição de escultura portuguesa do Museu Nacional de Arte Antiga está uma das minhas peças de imaginária medieval favoritas — um São Bartolomeu de meados do século XIV, com uma iconografia incomum no país e, vamos ser sinceros, um pouco horripilante para os mais sensíveis: um Bartolomeu que traz aos ombros a sua própria pele esfolada. Em Portugal, durante a Idade Média, preferiram-se outros dois modelos de representação deste santo, nos quais é representado com uma faca na mão, eufemismo mais simpático e menos gráfico para o seu esfolamento, ou com o demónio acorrentado e amansado a seus pés.”
“Vi um senhor a sair da igreja e ele é que nos abriu a porta”
No dizer de Inês Abreu não havia até ao início deste ano qualquer projeto online exclusivamente dedicado à arte medieval portuguesa e muito menos com a abordagem pop que autora pretende imprimir. “Há mais de um ano que andava a pensar criar um espaço na internet onde pudesse partilhar ideias, textos e imagens, mas não sabia bem em que plataforma ou com que linguagem”, conta.
“Sempre tive algum receio de me expor. O meio da história da arte é bastante exigente, há sempre pessoas atentas ao que escrevemos e ainda bem. Finalmente, em janeiro decidi avançar e achei que o Instagram seria a melhor opção, porque é uma plataforma de cliques e reações mais instantâneas e focada na imagem. Não queria uma página sobre arte medieval portuguesa com textos extensos e densos, que aborrecessem as pessoas, mas sim textos resumidos, com informações importantes e interessantes”. Entretanto, também criou uma página Idade Média Pop no Facebook, mas esta é menos popular e pauta-se pela republicação de conteúdos de outros utilizadores.
A autora não se limita a reproduzir fotos já existentes na internet ou a escrever textos com base em investigações e livros já conhecidos. Vai mesmo aos sítios, é ela a autora das fotografias, fala com pessoas que lhe contam histórias e com isso enriquece os conteúdos que publica. No último fim de semana, por exemplo, esteve na Guarda, com os pais, e aproveitou para visitar o museu regional — o que também lhe interessava para recolha de informações no âmbito da tese de mestrado.
“Estávamos em Valhelhas, um sítio muito bonito perto da Guarda, e quis ir fotografar a igreja matriz, mas a igreja estava fechada, o que é muito comum nos sítios rurais”, recorda. “Como sempre, tive de ir falar com os locais, à espera de encontrar alguém que tivesse a chave e pudesse abrir a porta. Normalmente, estas pessoas vivem perto das igrejas. Ninguém sabia. Finalmente, vi um senhor a sair da igreja, que pelos vistos já tinha sido presidente da Junta de Freguesia, e ele é que nos abriu a porta. Disse-me que atrás do altar principal havia frescos medievais, que não são visíveis aos visitantes. Abriu uma porta pequenina do altar, o que me permitiu ver e fotografar as pinturas murais.”
Em breve, aquele episódio dará mote a uma das publicações. Inês Abreu não tem dúvidas de que “há lendas e pormenores que não estão na internet, muitas vezes só são do conhecimento das comunidades locais”. Por isso, conclui: “É mesmo preciso ir aos sítios”.
“Espero conseguir monetizar”
Além de preparar o mestrado, Inês Abreu tem uma pós-gradução em história medieval e, noutra área totalmente distinta, colabora com o site Rimas e Batidas, para o qual fotografa músicos. Com duas amigas, formou entretanto o coletivo de DJs M3DUSA, que mistura música de mulheres do hip-hop e do R&B. Um dos objetivos profissionais é o de fazer crescer a Idade Média Pop e “vender o modelo a câmaras municipais ou instituições museológicas ou a órgãos de comunicação social”. Uma rubrica na rádio e na imprensa escrita, ou talvez um canal no YouTube com visitas guiadas, são algumas das hipóteses.
“O meu pai, que é uma das referências principais da minha vida, diz muitas vezes que tenho de criar o meu lugar no mercado de trabalho em Portugal. Na História da Arte e na História há quase sempre três saídas: professora, museóloga ou investigadora. São três áreas que adoro, mas se calhar vai ser muito difícil e tenho de começar a pensar como sobreviver e sustentar-me. Por isso, o Idade Média Pop é um projeto que levo muito a sério e que espero conseguir monetizar.”
Deslumbrada desde há muito pela Idade Média, a autora da página considera este período da história — que começa em 476, com a queda do Império Romano do Ocidente, e termina segundo alguns historiadores em 1453, com a queda do Império Romano do Oriente — é cada vez mais apelativo para o grande público, sobretudo em Portugal, que nasceu como país neste mesmo período.
“Penso que as pessoas olham a Idade Média como uma fase irracional, de fanatismos, lendas, magia, bruxas. Estamos cada vez mais distantes desse período e o que define o nosso tempo, que é a tecnologia, não existia”, resume. “Aquele era um mundo desprovido de todos os sistemas que conhecemos agora, desde logo os telemóveis e os ecrãs constantemente presentes na nossa vida. O interesse coletivo virá daí: a Idade Média é considerada o oposto do que temos hoje.”