Primeiro dia de Portugal Fashion. Numa agenda dominada pela hibridez do suporte, foi Estelita Mendonça quem quebrou a nova distância imposta entre público e moda. “Costumo dizer que o desfile ao vivo é o ponto alto de uma coleção, é preciso ver as coisas em movimento. Fazer um vídeo nem sequer foi uma opção”, admite o criador de 33 anos.

Não é que tenha vestidos esvoaçantes ou silhuetas dramáticas para apresentar, mas até um menswear funcional e utilitário como o seu ganha o caminhar certo de um manequim. Sobretudo quando o cenário é privilegiado, neste caso o cais onde a alfândega encontra o Douro. A quebrar a serenidade do momento só mesmo o caos escondido atrás da coleção. Em bom rigor, não o caos, mas sim Khaos, divindade à qual a mitologia grega atribui a origem de todas as coisas.

O desfile de Estelita Mendonça à beira-rio © Melissa Vieira/Observador

A coleção que apresentou — primavera-verão 2021 — foi desenhada e confecionada antes da pandemia, fruto da antecipação exigida pelo mercado, sobretudo no que toca às coleções masculinas. De uma referência fértil em abordagens e interpretações, Estelita passou à experimentação. Na prática, foi ousado na mistura, mas muito pouco caótico na sua concretização.

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“O workwear está presente na marca desde a primeira coleção. Com esta ideia de explorar o que seria o caótico, misturámos o máximo possível texturas, cores e materiais. E queríamos que se percebesse”, explica ao Observador. A coleção não foge à veia de minimalista confesso, garante. Ainda assim, a presença de um padrão mais profuso e a valorização dos detalhes em algumas pelas testam os limites do conceito.

Comercialmente, não se pode queixar muito da pandemia. As vendas online aumentaram e as feiras internacionais não correram tão mal como esperado. Estelita Mendonça é um criador de moda na era digital e está pronto a abraçar isso. Entusiasta? Sim, só não lhe tirem o desfile.

Katty Xiomara e a coleção que lhe veio da alma

Há muito que Katty Xiomara voltou as costas ao desfile. Nas últimas estações, o formato de apresentação permitiu ao público vaguear e descobrir pelo próprio pé (e não pelo das manequins) as propostas da criadora. A coleção do próximo verão nunca poderia ser uma exceção, agora que vários outros criadores lhe seguem o exemplo e trocam o andamento da passerelle por um show pré-produzido.

“Sem público e com uma versão puramente digital, tínhamos de envolver as pessoas e não podia ser só a réplica de um desfile”, assinala Xiomara, no final de uma longa ronda de entrevistas — afinal, é uma veterana da moda nacional. O caminho que a trouxe até à curta-metragem que exibiu esta quinta-feira foi a própria coleção — “Alma”, o punhado de silhuetas leves e esvoaçantes, de visuais ricos em camadas e onde cada cor tem um significado só podia ser mostrada assim, através de uma história.

A apresentação de Katty Xiomara: depois da curta-metragem de Mónica Santos, duas manequins vestiram as peças © Melissa Vieira/Observador

“É a alma, é algo flutuante, etéreo e que pode ser contado de muitas formas. Foi extremamente difícil. Primeiro, tentei fazê-lo através das cores. O preto e o branco por causa dos contrastes e porque temos sempre um lado mais escuro e um lado mais puro. O primeiro não tem de ser mau, pode ser melancólico. O segundo pode ser também abertura”, explica. A semiótica da paleta não fica por aqui — há cinzas, tons esverdeados e lilases, cores que remetem a designer para uma aura invisível.

Mónica Santos foi a outra roda desta engrenagem. Realizou ela a fita que lançou o mote para a apresentação desta quinta-feira à tarde. Tão inspiradora quanto complexa, a noção de alma dificilmente se esgotará no verão de Xiomara, que a leu com as suas lentes. Entre plissados, pregas, laços e nós, peças multiusos, elementos românticos e silhuetas ultra femininas, foi também a alma de Katty que ficou a descoberto.

“Acreditamos que é um evento seguro”. Mais distância e menos gente no arranque do Portugal Fashion

Sophia Kah fez a festa, mas foi a Ernest W. Baker que refrescou o dia

Numa edição marcada pelas apresentações ditas híbridas, uma combinação de vídeos produzidos previamente com uma amostra das coleções no local, Sophia Kah, a marca de Ana Teixeira de Sousa, mostrou-se bem palpável. Tocar nas peças deveria, aliás, ter sido requisito obrigatório, dada a riqueza das texturas. Infelizmente, impõe-se a distância, sobretudo no mais intimista dos momentos deste primeiro dia de Portugal Fashion.

Look do desfile de Sophia Kah © Ugo Camera

No Hotel Neya, junto à Alfândega do Porto, o ajuntamento não foi além das 40 pessoas, mais do que suficiente para dar uma festa. Não sendo permitido, a marca portuguesa tratou, pelo menos, do guarda-roupa. A proposta foi de escape, na forma de brilhos e plumas e com uma noiva que encerrou o desfile, opção inédita para a designer portuguesa, que escolheu precisamente o annus horribilis dos casamentos para levar a Sophia Kah até ao altar, e com uma cauda que, só por si, impõe distanciamento social. No fundo, Ana quis materializar o sonho, mesmo em plena crise.

O dia terminou ao final da tarde, bem mais cedo do que o habitual num calendário de moda português. A estreante Ernest W. Baker foi a última a encher a sala de projeções. Em vez de se focarem apenas no próximo verão, Inês Amorim e Reid Baker trouxeram ao Porto um bilhete de identidade da marca criada em 2018 e ainda parte do processo produtivo, que tem lugar precisamente no norte do país. A dupla já cunhou um menswear clássico e minimal, onde as referências western e a ironia espreitam subtilmente num projeto bilingue, que há dois anos chegou à lista de finalistas dos Prémio LVMH.

Uma fotografia e uma rosa vermelha — tradicional e provocadora, a marca Ernest W. Baker recebeu assim os convidados do desfile © Melissa Vieira/Observador

Quem também fez parte do alinhamento deste primeiro dia foi David Catalán. Sem surpresas, o jovem criador espanhol, radicado em Portugal, foi, na verdade, quem inaugurou o telão da alfândega. Recordou o desfile do mês passado, em Milão, e ainda colocou cinco manequins, uma pequena amostra da coleção do próximo verão, na primeira fila.

Esta quinta-feira ficou ainda marcada por apresentações do Bloom — João Sousa, Arieiv, 0.9 Virus e Carolina Sobral foram só a primeira leva, porque a plataforma reservada aos novos talentos volta na sexta-feira. No mesmo dia, a moda nacional volta a desfilar (ou não) na Alfândega do Porto. São esperadas as apresentações de Susana Bettencourt, Inês Torcato, Maria Gambina, Pé de Chumbo e Miguel Vieira.