O Tribunal Constitucional rejeitou o segundo recurso de Lalanda e Castro para afastar o juiz Carlos Alexandre da instrução do caso Máfia do Sangue. O antigo patrão de José Sócrates não se havia conformado com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que rejeitou um incidente para tirar o magistrado do processo também conhecido como Operação O Negativo, e avançou para o Tribunal Constitucional no final do ano passado. Na decisão sumária de 30 de dezembro, agora consultada pelo Observador, o juiz conselheiro José António Teles Pereira recusou o recurso de Lalanda e Castro clarificando não haver qualquer inconstitucionalidade no acórdão de segunda instância, contrariamente ao sustentado pela defesa.

Num despacho já posterior a esta decisão, que consta no processo Máfia do Sangue, Carlos Alexandre escreve ter sido notificado da decisão e entender que o incidente estará decidido quando o apenso respetivo baixar ao Tribunal Central de Instrução Criminal. O magistrado diz ainda que como está a atuar em substituição do colega Ivo Rosa fica a aguardar uma decisão transitada em julgado. Caso ainda ocorra a substituição nesse momento temporal, diz, agirá em conformidade.

A instrução deste processo está parada há meses — deveria ter começado em outubro —, devido ao incidente e posterior recurso interpostos por Lalanda e Castro para as duas instâncias superiores. Carlos Alexandre substitui Ivo Rosa, uma vez que este último juiz está em exclusividade com a operação Marquês.

No caso Máfia do Sangue, que nasceu de uma certidão extraída do caso Marquês, investigam-se suspeitas de obtenção, por parte da Octapharma, de uma posição de monopólio no fornecimento de “plasma humano inativado e de uma posição de domínio no fornecimento de hemoderivados a diversas instituições e serviços que integram o Serviço Nacional de Saúde (SNS)”. Sete arguidos foram acusados em novembro de 2019 por corrupção, recebimento indevido de vantagem, falsificação de documentos, abuso de poder e branqueamento de capitais — entre eles Lalanda e Castro, ex-líder da Octapharma, e o ex-presidente do INEM Luís Cunha Ribeiro. E mais de um ano depois pouco ou nada avançou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os alegados problemas familiares invocados por Lalanda

No ano passado, quando, depois de muitos avanços e recuos, o arguido soube que a instrução ficaria nas mãos de Carlos Alexandre suscitou um incidente para a Relação de Lisboa, invocando alegadas más relações entre a sua família e a do juiz.  Os desembargadores deixaram mais tarde claro que o requerente não apresentava qualquer “fundamento concretizado, apto a consubstanciar a existência do ‘motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade’ do sr. Juiz visado” — algo que agora é citado também pelo juiz conselheiro na sua decisão.

Juntando ao processo peças de jornais e trechos do livro “O juiz”, da autoria de Inês David Bastos e Raquel Lito, a defesa de Lalanda e Castro invocou existir um motivo sério e grave para desconfiar da imparcialidade do juiz. As passagens do livro dão conta, por exemplo, dos esforços do pai do juiz — que até terá penhorado a sua mota — para pagar a mensalidade do colégio que os filhos frequentavam em Mação, o D. Pedro V, de que Anastácio Nogueira Lalanda (tio-avô de Lalanda e Castro) era diretor.

“Lalanda tolera atrasos a quem lhe concedera empréstimos para as obras, não a Zé Carteiro. Irascível, manda recados nas aulas: ‘Diz ao teu pai que se ele não vier pagar não te levo a exame”, refere o livro, sobre recados alegadamente dados ao irmão de Carlos Alexandre.

À Relação de Lisboa, segundo já foi noticiado pelo Correio da Manhã, o juiz Carlos Alexandre contrapôs, porém, que “o facto de ser pobre ao longo de toda a vida não é anátema nem lhe provoca sentimentos hostis, recalcitrância ou ressabiamento contra ninguém”. E até salientou que, quando foi seu professor, o tio avô de Lalanda e Castro lhe oferecera uma gramática e livros que ainda hoje guarda.

Da Relação, a defesa avançou para o Constitucional, considerando que existiu uma inconstitucionalidade da segunda instância ao se interpretar que, para ser procedente um pedido de recusa, era necessário que houvesse uma ação concreta de um magistrado no processo, não bastando o contexto de alegada conflitualidade das famílias apresentado com base em notícias e num livro.

O Constitucional concluiu, porém, que não existem “condições de recorribilidade”, dando razão ao acórdão da Relação: “Na verdade não resulta — e, diríamos, é uma evidência que não resulta — dos fundamentos da decisão recorrida qualquer norma ‘[…] no sentido de que, para ser procedente uma recusa, o motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz a que se refere o artigo 43.º, n.º1, do CPP, tem necessariamente que ter sido revelado numa atuação concreta do juiz visado, no processo em causa, reveladora de falta de imparcialidade’”.

É ainda referido que “não é possível extrair do conjunto de fundamentos da decisão [da Relação] a pretensa interpretação, não obstante a sugestão do recorrente, ao escolher iluminar os segmentos de maior conveniência argumentativa para si”.

Então em que se fundamentou a Relação, segundo o Constitucional, e que é válido?

“A decisão recorrida entendeu que só uma concreta atuação parcial poderia emprestar a considerações vagas e distantes a seriedade que elas, pela sua natureza, não ostentavam”. O juiz conselheiro adianta mesmo que, “com isto, não se afirmou que essa atuação no processo era a única via de demonstrar risco de parcialidade”. E lembrou a “dramatização” associada à escrita literária, assim como a existência de textos jornalísticos que não são notícias “cruas” para vincar a posição de que o que fora trazido ao processo só poderia ser entendido como meras considerações e não uma prova de conflitualidade que permitisse afastar um juiz.

“Vale o exposto por dizer que, por falta de coincidência entre a norma enunciada pelo recorrente e o critério normativo da decisão recorrida, se prefigura a inutilidade do recurso. Pelo exposto, não deve conhecer-se do respetivo objeto”, conclui o conselheiro Teles Pereira.

Uma instrução com mais recuos do que avanços

Esta instrução tem tido diversos avanços e recuos, que não começaram com o incidente de recusa de juiz. Em 2020, após o juiz João Bártolo, do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa, se ter declarado incompetente para dirigir esta instrução, o processo foi enviado para o Tribunal Central (TCIC) – tendo sido distribuído ao juiz Ivo Rosa. Mas a defesa considerou na altura que essa transição não respeitara os prazos legais — a declaração de incompetência e a posterior distribuição aconteceram em plena pandemia, numa altura em que os prazos processuais para apresentação de recurso e outros atos estavam suspensos em processos como este. O caso voltou, por isso, à proveniência, ou seja, ao TIC de Lisboa.

Depois de novo envio para o Tribunal Central, o juiz Carlos Alexandre agendou logo a primeira sessão para 12 de outubro, na qual, segundo fora já tornado público, deveria ser ouvido o advogado Paulo Farinha Alves, acusado por dois crimes de falsificação e branqueamento de capitais. Também o debate instrutório já tinha data marcada, seria em novembro.