Camille Saint-Saëns (1835-1821) revelou, em criança, uma precocidade comparável à de Mozart, mas, embora tenha tido uma vida longa – 86 anos – e produtiva – 420 composições –, apenas parte da sua obra está à altura das promessas juvenis. Por outro lado, embora Saint-Saëns tenha explorado diversos géneros e formatos, os programas de concertos e as gravações tendem a favorecer a sua música orquestral: os cinco concertos para piano, os três concertos para violino, os dois concertos para violoncelo e as cinco sinfonias. A música de câmara de Saint-Saëns tende a ser esquecida e Le Carnaval des animaux, que é a sua peça mais famosa neste domínio – na verdade, a sua peça mais famosa, em qualquer domínio – costuma ser ouvida na versão orquestral.

Saint-Saëns c.1880

A gravação em apreço é, portanto, uma excelente oportunidade para descobrir uma faceta menos conhecida de Saint-Saëns e para perceber que foi neste domínio que compôs alguma da sua música mais inspirada, revelação que é favorecida por a interpretação estar confiada a três notáveis músicos franceses: o pianista Bertrand Chamayou (n.1981), o violinista Renaud Capuçon (n.1976) e a jovem estrela do violoncelo Edgar Moreau (n.1994), todos artistas com aclamada discografia na Erato (incluindo um CD de 2018 por Chamayou com os Concertos para piano n.º 2 e n.º 5 de Saint-Saëns) e que já se tinham associado, em 2017, num CD com sonatas e o trio com piano de Debussy.

A obra mais arrebatadora do CD é a sombria Sonata para violoncelo e piano n.º 1 op.32, composta no final de 1872, quando Saint-Saëns atravessava um período de entusiasmo pelo violoncelo que resultou também no Concerto n.º 1 op.33, concluído pouco depois. A sonata é uma obra-prima, que merecia ser mais conhecida do que o concerto seu contemporâneo: abre com um Allegro de intenso dramatismo, a que se segue um Andante tranquilo sostenuto de grande originalidade, evocando um sereno e meditativo coral para órgão, em que o violoncelo desempenha o papel de pedaleira (Saint-Saëns declarou ter recorrido a material improvisado no órgão, instrumento em que era exímio).

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[II andamento (Andante tranquilo sostenuto) da Sonata para violoncelo e piano n.º 1, por Chamayou & Moreau:]

A obra conclui-se num Allegro moderato atormentado e impetuoso que está entre as melhores páginas de Saint-Saëns e da música de câmara do Romantismo.

[III andamento (Allegro moderato) da Sonata para violoncelo e piano n.º 1, por Chamayou & Moreau:]

Uma “petite phrase” do Allegro agitato da Sonata para violino e piano n.º 1 op.75, datada de 1885, teve a rara distinção de ser evocada numa obra magna da literatura: há musicólogos que a identificam com a “Sonata de Venteuil” em Em busca do tempo perdido. É demasiado generoso afirmar-se, como faz o livrete do CD, que a obra fascinou Marcel Proust, uma vez que, numa carta ao seu colega Jacques de Lacretelle, o escritor desvalorizou o “empréstimo”, classificando a “petite phrase” como “agradável mas, no fundo, medíocre” e Saint-Saëns como “um compositor que não aprecio”. Apesar do comentário pouco elogioso dispensado à “petite phrase”, o tumultuoso e carregado Allegro agitato que abre a dita sonata é o seu andamento mais inspirado; já a graciosidade do Allegro moderato é um pouco frívola e a agitação do Allegro molto final soa algo gratuita.

[I andamento (Allegro agitato) da Sonata para violino e piano n.º 1, por Chamayou & Capuçon:]

O Trio com piano n.º 2 op.92, concluído em 1892, é uma obra transbordante de ideias, que abre com um Allegro non troppo electrizado pela mesma energia negra que anima o Allegro moderato da Sonata para violoncelo e piano n.º 1. Chamayou, Capuçon e Moreau dão prova de uma articulação irrepreensível no azougado Allegretto, primam pela elegância e delicadeza no Andante con motto e conseguem combinar traquinice e ternura no Grazioso, poco allegretto. Ninguém dará por perdidos os 75 minutos passados com este disco.

[I andamento (Allegro non troppo) do Trio com piano n.º 2, por Chamayou, Capuçon & Moreau:]