Se dependesse de Madlib, Sound Ancestors nem existia. Seriam apenas peças soltas dispersas pelos arquivos, esboços de beats e partes de jams feitas em estúdio com músicos. Mas Kieren Hebden/Fourt Tet tinha há anos a ideia de fazer um disco só com instrumentais do amigo, o que acabou por concretizar-se agora. Atenção! Este não é um disco de Madlib e Four Tet. Four Tet faz acontecer, mas não é o protagonista, embora seja creditado na seleção, arranjos e masterização. Sound Ancestors é o surpreendente primeiro álbum de instrumentais de Madlib, depois de quase 30 anos como produtor e muitos discos sob outros nomes e com outras pessoas. Só existe porque Four Tet insistiu muito e ainda bem que o fez.

Otis Jackson Jr, mais conhecido como Madlib (apesar dos múltiplos alter egos, entre eles Beat Konducta e Loopdigga) começou a fazer rimas e beats no início dos anos 90, primeiro com o coletivo Crate Diggas Palace, depois com Lootpack. Com a transição do século expandiu os horizontes, tornou-se multi instrumentista e dividiu-se em colaborações. Criou o alter ego Quasimoto para fazer rap cáustico e aproximou-se do jazz com o projecto Yesterdays New Quintet, um ensemble de um homem só, multiplicado em inúmeras personagens para prestar homenagem a um género que o acompanhava desde criança e no qual foi progressivamente mergulhando mais fundo.

No magnífico álbum de remisturas Shades of Blue (2003), por exemplo, o acesso privilegiado aos arquivos da lendária editora Blue Note permitiu-lhe trabalhar sobre clássicos de Donald Byrd, Horace Silver ou Herbie Hancock. Enquanto isso, Madlib manteve sempre proveitosas colaborações com outros produtores e rappers: Jaylib com J Dilla, Madvillain com Mf Doom, mais recentemente MadGibbs com Freddie Gibbs e Maclib com Mac Miller (uma ideia interrompida antes da concretização, devido à morte de Mac Miller, em 2018). Além de forte impressão digital na periferia mais exploratória do hip hop, Madlib trabalhou também com estrelas, entre elas Kanye West, Snoop Dogg e Erykah Badu. Parecendo muito, esta é só uma pequena parte do todo.

Nas últimas décadas, mesmo que gozando de visibilidade limitada devido a uma personalidade discreta, Madlib tem sido um dos nomes mais ativos e inventivos do hip hop e até é compreensível que nunca tenha sentido necessidade de lançar um álbum só com instrumentais seus, até porque fez isso várias vezes como Beat Konducta.

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[ouça “Sound Ancestors” na íntegra através do YouTube:]

Sabe-se que Otis Jackson Jr, filho do cantor soul Otis Jackson, tem ouvido apurado e uma coleção de discos gigantesca (já confessou pesar qualquer coisa como 4 toneladas e ocupar várias assoalhadas, de resto, o mínimo exigido a um digger e produtor do seu calibre). Para ele, fazer beats é um processo automático que se repete com cada entrada nova na coleção, ou, pior ainda, a cada nova audição de um disco, mesmo que já conhecido. Não é difícil imaginá-lo com a cabeça cheia de beats em progresso e vários discos externos com esboços e tentativas a que não dá grande importância.

Foi isso, ou uma pequena parcela traduzida em centenas de gravações, que Kieren Hebden/Four Tet, que conhece Madlib desde que fez remisturas para Madvillain em 2005, recebeu e acabou por compor como álbum. Sound Ancestors é como um puzzle de Madlib organizado por Four Tet, ou, como alguns já disseram, Madlib traduzido por Four Tet. O processo de construção, 16 faixas em pouco mais de 40 minutos, foi demorado e meticuloso: durante alguns anos, Kieren recebeu faixas mais ou menos acabadas, loops e experiências, que organizou, escolheu, arranjou e manipulou, enviando depois as propostas a Madlib que por sua vez dizia sim ou não às ideias de Hebden. O contributo criativo de Four Tet é acima de tudo conceptual, ou de curador: ele não criou sons, mas oferece uma visão muito particular do universo de Madlib, na essência não diferente da que conhecíamos, mas ligeiramente desviada pela perspetiva pessoal.

Nesse sentido, Kieren Hebden faz diferença nesta história. Sound Ancestors surpreende mesmo quem já conhece o universo de Madlib. Não é bem um disco de instrumentais hip hop, os beats não são pensados para levar flow verbal e há casos em que, mesmo sem cantores, parecem canções, como acontece com o belíssimo “Road To The Lonely Ones”, construída com samples de duas canções dos Ethics, uma banda de Philly Soul de finais do anos 60. Quase canção também, o luminoso “Two for 2”, homenagem ao prodigioso J Dilla, falecido em 2006. Sound Ancestors é claramente o disco de um digger, alguém que procura e coleciona outros discos e é capaz de extrair deles sumo para coisas novas. Une partículas de música e história, explora a memória da música negra através de elementos de blues, jazz, soul, reggae ou dancehall e até cita o próprio hip hop (samples de Snoop Dogg e Busta Rhymes, por exemplo), mas também tem rock psicadélico (australiano, em “The Call”), guitarra espanhola, percussão afrolatina e até “Searching For Mr Right” dos Young Marble Giants a pairar como um fantasma em “Dirtknock”. Entre o freakout mais esquisito e o divagação poética, Sound Ancestors é um disco complexo e experimental que flui com uma leveza desafiante.