Livro: O regresso de Júlia Mann a Paraty
Autora: Teolinda Gersão
Editora: Porto Editora
Páginas: 144
Preço: 15,50

A capa de “O regresso de Júlia Mann a Paraty”, de Teolinda Gersão (Porto Editora)

No marco dos 40 anos de carreira, Teolinda Gersão publica O regresso de Júlia Mann a Paraty pela Porto Editora. Com uma prosa ponderada, equilibrada e subtil, tece três vozes. Parte dos factos históricos e então puxa-lhes os fios.

São três novelas que se fazem romance pelas linhas pensadas e cruzadas. A narrativa tem a sua originalidade, faz-se pelas vozes de Freud, pai da psicanálise, o escritor Thomas Mann e Júlia Mann, mãe do anterior, nascida em Paraty e levada para a Alemanha contra a vontade. O ângulo que a autora apresenta tem a particularidade de ser uma proposta que leva à letra a ideia de suspensão do real. A técnica é irrepreensível – a prosa é segura, forte, escorreita, bela. Em termos de achamento formal do texto, está muito acima da média dos escritores portugueses.

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Cada uma das personagens tem a sua voz narrativa e, através dessas criações, Teolinda Gersão permitiu-se escarafunchar factos para fazer uma proposta. A autora prova ainda como conhece a vida e a obra de Freud e de Mann, e ainda mostra de forma convincente o que seriam para além dos pontos biográficos que sobreviveram até hoje, ou seja, dos seus anímicos estados psicológicos. A partir daí, faz a radiografia da Alemanha pouco antes da segunda guerra mundial.

Freud e Mann são mais do que consagrados nas suas áreas, mas os capítulos que lhes fazem referência deixam clara a mácula da inveja ou da necessidade de auto-afirmação. Freud percebe que a cultura não basta para enfrentar o nazismo. Mann não tem pudores em justificar a sua superioridade de escritor. E Teolinda Gersão, quase como quem não quer a coisa, conduz o leitor pelo totalitarismo nazi, pela arrogância de quem faz a literatura (e que conta com a complacência de quem não a faz), do pensamento dominante, da homossexualidade escondida, das relações de fachada, da subalternização das mulheres até dentro da família.

A autora apresenta a radiografia de uma Alemanha, pondo Freud a falar em 1938, questionando o falhanço da cultura perante o horror nazi:

“Só quando o país começou a enlouquecer deixei de me sentir alemão, à medida que a loucura social avançava.

A Alemanha regrediu milénios, e mergulhou numa barbárie a que poderíamos chamar pré-histórica. (…) Apesar das grandes obras de Goethe, Schiller, Hölderlin, Bach ou Beethoven, apesar de toda a sua música, literatura, artes e filosofia, no momento crucial a cultura falhou. E o que dela restava, ou era ainda saudável, foi violentamente atacado, num assalto sem precedentes, e a lucidez, a racionalidade e a ética apagaram-se.” (p. 8)

Entende-se então o desenvolvimento da cultura como o degrau de cima do desenvolvimento humano – e entende-se então que esse degrau não foi suficiente para impedir que tanta coisa derrocasse, ou que tanta coisa fosse erigida. Assim, a autora também mostra de que forma essa cultura foi questionada, impedida e escondida para que não se rompesse um dogma e um poder político e ideológico:

“Os livros que escrevi, como os de tantos outros, foram declarados subversivos e degenerados, e lançados na fogueira ao som de injúrias e gritos, ou de um silêncio tão pesado que só se ouvia o crepitar das chamas. Quase todas as grandes obras acabaram em cinzas, e à morte do espírito irá seguir-se o extermínio de milhares, ou milhões, de vidas. Onde se queimam livros acabar-se-á por queimar pessoas” (p. 8/9)

De resto, há um mergulho na psique deste narrador, que se analisa à luz das suas próprias teorias:

“Também eu fui, e sou, um homem solitário, cumprindo estoicamente um destino, e por vezes senti, como ele, falta de compreensão e partilha, falta de intimidade e de amor, embora para mim só o amor das mulheres estivesse em causa. Ao contrário dele, nunca estive interiormente dividido. Recalcado sim, como qualquer ser humano, porque a livre satisfação sexual é incompatível com a civilização. Nem todas as mulheres que desejei eram acessíveis, pelo menos sem aquela sufocante sensação de culpa, sempre que na vida estive à beira de pisar linhas vermelhas.” (p. 17)

Pensando em Thomas Mann, parece pôr-se num lugar inferior, santifica o papel de um escritor. E diz:

“Como todos os homens que sonham ser grandes, muitas vezes fui pequeno e mesquinho. Como o mais banal de todos, fui acometido pela inveja, e desejei estar no lugar dos que invejava.” (p . 17)

Pelo contrário, “os escritores, graças à sua intuição e criatividade, conseguiam ter na vida real o que imaginavam: admiração, poder, e mulheres.” (p. 18). Freud rende-se então à sensação de superioridade da escrita sobre a psicanálise, considera que o brilho da escrita seduz mais do que a tarefa esforçada do psicanalista.

A segunda parte do livro é cronologicamente anterior à primeira (1930), e aí é Mann a pensar em Freud. Aqui, também o escritor pensa na sua inveja, assume o poder da psicanálise, que faz com que se dispa um papel social, que deixa os analisados sem defesa, nus e humilhados diante de um olhar. E, contra a afirmação de que os escritores têm na vida as mulheres que imaginam, pensa que Freud é desejado por ambos os sexos, ao mesmo tempo que “evitado e temido, porque o paroxismo do desnudamento e da entrega é uma espécie de morte voluptuosa” (p. 44).

Ainda assim, assume a superioridade que o outro lhe atribui:

“Na minha cadeira é um prémio Nobel que está sentado, um homem que ganhou, no seu ofício, o maior galardão do mundo. Aposto que o senhor trocaria de bom grado o seu lugar pelo meu. Seria a sua vingança contra a sociedade que lhe quis tão mal, e tão estrondosamente o combateu e criticou.

Sim, eu compreendo-o, e sinto compaixão por si:

Judeu, pobre, intelectual contra a corrente, defrontando uma sociedade que não quer ser desmascarada nem mudar, e que o senhor reduz a migalhas, sem ilusões nem complacência.” (p. 51)

Na terceira parte, Teolinda Gersão explora o papel social de uma mulher dentro da sua família, pega numa “das poucas mulheres que ousaram” (p. 118) e escreve esta passagem maravilhosa:

“Sempre procuraria outro homem e outra vida, não estava satisfeita com a sua nem via no adultério o maior dos crimes, ao contrário dos romances e da sociedade, que perseguiam as adúlteras com violência implacável, frequentemente até à morte. Não havia perdão para a sua maldade, que levava os maridos ao suicídio, ou a arriscar a vida em duelos fatais” (p. 118).

O olhar de Gersão é, em simultâneo, social e íntimo, vê alguém e a sua condição e vê o que é alguém dentro da sua condição. Na prosa da autora, não há o caminho fácil da análise unilateral, antes uma procura dos abismos, dos motivos, do que ninguém assume.