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Roda o Centro é um encontro de rappers e break dancers para batalhas que todas as semanas acontecem no sate park de Coimbra
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Roda o Centro é um encontro de rappers e break dancers para batalhas que todas as semanas acontecem no sate park de Coimbra

Roda o Centro é um encontro de rappers e break dancers para batalhas que todas as semanas acontecem no sate park de Coimbra

Batalhas, "diss tracks", conflitos verbais e "beefs": que papel ocupam hoje no hip hop?

Estímulo criativo ou cultura tóxica? À boleia da disputa entre Kendrick Lamar e Drake, falámos com protagonistas do panorama português para contextualizar a cultura competitiva no rap.

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Um conflito entre dois dos maiores rappers do mundo fez manchetes por todo o lado ao longo das últimas semanas. De um lado, Drake; do outro, Kendrick Lamar. O impacto mediático foi tão grande que o tema chegou à campanha eleitoral das presidenciais norte-americanas, com a equipa de Joe Biden a usar um dos temas desta disputa verbal — Euphoria, de Kendrick Lamar — num vídeo publicado nas redes sociais dirigido ao adversário Donald Trump.

Apesar da dimensão, tendo em conta a popularidade dos dois músicos envolvidos, não é propriamente uma novidade. Foram muitas as disputas verbais que marcaram a história do hip hop ao longo dos anos — afinal, a competitividade está no ADN desta cultura nascida nos anos 70 em Nova Iorque, quando o Bronx e outros bairros pobres e violentos da cidade tinham uma cultura de gangues de rua que ostentavam nomes, símbolos e até roupas para se identificarem.

Essas linguagens urbanas e esse espírito de rivalidade foram transportados para o hip hop quando a subcultura se começou a erguer — em muitos casos, substituindo a violência pela criatividade, desenvolvendo uma lógica de competição saudável e pacífica, que tanto se refletia nas batalhas de breaking, nos concursos de DJs, na essência do graffiti — o mote é espalhar o próprio nome — e nas disputas verbais entre rappers que surgiram pouco tempo depois.

Afrika Bambaataa, um dos pioneiros do hip hop, personifica mais do que ninguém essa transição: era o líder de um destes gangues de rua, os Black Spades, e tornou-se um dos DJs e músicos na linha da frente do hip hop, estabelecendo muitas das bases desta subcultura, através da sua Universal Zulu Nation, associação que persiste até aos dias de hoje e que foi formada na década de 70 por muitos jovens que tinham esse historial ligado ao crime.

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Desde então, formaram-se códigos de honra no rap, sempre com uma lógica de um rapper se tentar elevar perante os outros, demonstrando a sua habilidade para a escrita. Mas é uma linha que é transversal a toda a cultura hip hop. “Tem a ver com a qualidade de cada indivíduo, numa de se achar que é o melhor e de querer sempre — seja a nível de bombing nas ruas, um bboy com os seus moves, um rapper com as suas rimas ou um DJ a fazer scratch — ser melhor do que o outro”, explica ao Observador Nuno Varela, um dos fundadores da Liga Knock Out, criada em 2012, que é uma das mais importantes competições de rap em Portugal.

É bom relembrar, e as 'diss tracks' e o 'battle rap' mantêm essa coisa viva, que um rapper é alguém que tem o dom da palavra — na forma como a transmite e como diz as coisas, como cria conceitos"

“Tem muito a ver com a rua e aquilo que acontece em todos os bairros pelo planeta fora. Há sempre uma competitividade. Se chegares agora à Zona M de Chelas, és capaz de ver dois miúdos que não têm nada a ver com a cultura hip hop, mas que têm uma competitividade por quem tem a melhor bike. É um contexto social, sobre querer sobressair num meio em que se calhar pouca gente sobressai.”

[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]

Ao longo das décadas, a cultura hip hop nascida no microcosmos do Bronx — mas com raízes afro-americanas profundas, com ligações à cultura jamaicana e à terra ancestral de África — disseminou-se pelo planeta e tomou conta da cultura pop. A componente da competição entre rappers nunca esmoreceu, bem pelo contrário, e em todos os países, incluindo Portugal, houve conflitos verbais entre artistas. Gravaram-se e lançaram-se músicas com letras dirigidas a outros, num ato de competitividade e demonstração de qualidade lírica. Estes temas ficaram conhecidos, no seio do hip hop, como “diss tracks” — ou “faixas desrespeitosas” —, conquistando um estatuto cultural dentro do movimento. Por vezes, podem ser músicas dirigidas especificamente a alguém; noutros casos, são canções que evocam o nome de diversos adversários. Talvez um dos exemplos mais conhecidos deste género em Portugal seja o de Fuck Y’all Yo, quando Allen Halloween abalou o hip hop português em 2007, ao atacar vários dos seus principais protagonistas.

A disputa verbal como exercício lírico e criativo saudável

“O que posso sempre retirar de positivo das diss tracks hoje em dia, e principalmente nesta onda recente do Kendrick e do Drake, é a relevância do skill”, explica Sir Scratch, rapper veterano. “Nem é exatamente a importância da mensagem, porque isso sempre existiu e existirá, seja na parte mais comercial ou underground. Mas o facto de darmos valor àquilo que se está a dizer e a como se está a dizer, ao skill do rapper, é das coisas mais positivas que pode haver. Porque, à medida que o tempo passa, e principalmente na parte mais comercial tendo em conta que esta cultura se expandiu de forma global, muitas vezes, e sobretudo nos últimos anos, aquilo que o rapper diz ou o seu skill perdeu um bocadinho a relevância. Podes ser um rapper conhecido, com vendas, teres concertos cheios e discos aclamados, os teus maiores singles podem ter grandes beats, podes ser um grande performer… Mas é bom relembrar, e acho que as diss tracks e o battle rap mantêm essa coisa viva, que um rapper é alguém que tem o dom da palavra — na forma como a transmite e como diz as coisas, como cria conceitos. Por isso ainda é positivo existirem batalhas e diss tracks nos dias de hoje. Nunca podes ir para uma coisa destas se não fores um bom rapper.”

Em 2017, numa fase de enorme expansão, o circuito do rap português parou para ouvir um conflito entre alguns dos maiores rappers do momento. 9 Miller e Holly Hood, amigos e parceiros de rimas há vários anos, enfrentavam Piruka numa disputa verbal que acumulou milhões e milhões de visualizações ao longo de várias faixas, algumas das quais tiveram inclusive direito a videoclips, desde Golpe Baixo a Não Faz Isso, passando por R.I.P. Holly Hood.

“São uma cena de que gosto e sempre gostei”, admite Holly Hood. “É algo que sempre houve no rap, duelos de palavras ou de intelecto. Do ponto de vista artístico, acho que a arte e o rap não ganham mais por ser um beef ou por ser diss, mas o diss traz uma atenção ao rap e aos próprios rappers envolvidos que quase não existe se não for assim. Em termos do que faz a arte, não é assim tão relevante. Mas, em termos do circo romano, é muito importante.”

O rapper salienta que este tipo de lógica não começou no rap e que é algo que, de alguma forma, está inerente à poesia e à arte. “Existe desde os gregos, eu até tenho tatuado num braço um poeta grego que é o Hipponax que é creditado como o primeiro poeta com poesia ofensiva — aquilo a que chamamos vitupério. Sempre gostei de ataques de palavras.”

"Se chegares agora à Zona M de Chelas, és capaz de ver dois miúdos que não têm nada a ver com a cultura hip hop, mas que têm uma competitividade por quem tem a melhor bike. É um contexto social, sobre querer sobressair num meio em que se calhar pouca gente sobressai."
Nuno Varela, um dos fundadores da Liga Knockout

O próprio Sir Scratch, há quase duas décadas, esteve envolvido nalgumas diss tracks — sobretudo contra Lancelot e o seu irmão Calígula. “Houve diss tracks, falou-se muito, mas no final do dia éramos só rappers competitivos a mostrar o nosso skill — sou melhor do que tu, tu és fraco, com jogos linguísticos, mas é só isso. Requer uma certa maturidade para entenderes isso. Se fores um conhecedor da cultura, sabes que não passa daí.”

Nuno Varela realça que esta vertente do rap “sempre fez parte” e dá o exemplo criativo de mixtapes ou DVDs inteiramente compostos por diss tracks, tal e qual uma modalidade mais competitiva dentro do universo do rap.

“Para quem acompanha os beefs há tanto tempo, isto entre o Drake e o Kendrick quase foi nostálgico. Agora senti-me foi um bocado atrapalhado pela quantidade de informação que existe, porque tens os rappers a fazerem conteúdo e depois tens os TikTokers, os influencers, as mil páginas que existem, a reagirem e a falarem. Antigamente estava tudo segmentado, tinhas de esperar que saísse uma revista XXL ou uma The Source para leres tudo o que estava associado a esse beef. Hoje em dia quase que teria de tirar uma semana para ver a quantidade de coisas que já saíram e a informação toda que existe.”

A importância relativa das “diss tracks” no rap

Outro artista que protagonizou uma série de diss tracks muito célebres no panorama nacional foi Nerve, que se envolveu numa disputa verbal com X-Tense no início do seu percurso, na viragem para a idade adulta.

“Estamos a falar de lutas de egos. Embora seja uma coisa que faz parte da história do hip hop, não sei até que ponto é que hoje em dia é necessário e importante”, acredita o rapper. “Isto tem atenção porque acabamos por a atribuir, se calhar porque nós, humanos, gostamos de testemunhar conflito, e o rap talvez possa ser um veículo para deixar escapar esse lado. É mais uma herança do que propriamente uma coisa importante no hip hop. Acabou por ser assim devido ao contexto em que o hip hop apareceu, e a competitividade acaba por estar na genética do hip hop nas suas várias vertentes. É uma coisa que está muito enraizada.”

Ainda assim, assume que não fica “indiferente” a estas disputas, e que acompanhou o que aconteceu entre Kendrick Lamar e Drake. “É uma boa fonte de entretenimento e de uma forma relativamente simples, porque joga com o shock value, com estas grandes revelações do Drake acerca do Kendrick e vice-versa, destes enredos que no fim do dia são camadas que já estão para lá dos fatores que se prendem com a capacidade para rappar. Enquanto artista, gosto de não atribuir demasiada importância a esse lado, precisamente porque muitas vezes tem mais a ver com o espetáculo do que com a qualidade.”

Os rappers portugueses Nerve e X-Tense, que em tempos foram protagonistas de uma popular disputa verbal feita à base de "diss tracks"

Embora hoje não participasse numa disputa destas, continua a escrever punchlines e linhas de egotrip, uma das características mais comuns e padronizadas no rap. “Desde sempre que gostei desse lado competitivo e, talvez por fazer rap há tantos anos, e o rap ter feito parte da minha formação, hoje em dia sou bastante competitivo. Às vezes digo que sou rapper antes de ser muitas outras coisas, porque esta arte acabou por afetar muitas outras áreas da minha vida e a minha forma de processar o mundo. E esse lado da competitividade manteve-se presente, tenho muitas músicas e recentes — e outras que ainda nem saíram — que têm essa componente muito presente. Nunca é uma coisa dirigida a alguém, já não acho tanta piada a esse lado, mexe com muitas coisas além de estar só a fazer música e hoje em dia é algo que não me interessa tanto. No entanto, isso não significa que eu não seja muito competitivo nas músicas ou no tipo de texto que apresento e vou mandando umas tiradas de vez em quando que são mais combativas.”

Para Nerve, o facto de esta batalha ter oposto dois dos maiores nomes do género prova a imensa competitividade que está intrínseca à genética da cultura hip hop. “É um género muito mainstream, mas este ADN do rap ainda está presente até nas formas mais comerciais do género — se considerarmos o Drake uma versão mais comercial do rap. O próprio Drake prestar-se a estas batalhas e a esta espécie de código de honra entre rappers — não quer dizer que ele consiga manter esta ideia com sucesso, mas só o facto de ele se prestar a isso diz muito sobre esta herança. Independentemente de qual é a colocação do artista, do mais underground ao mais mainstream, há aqui um veio de competitividade que atravessa o rap por completo, desde lá acima até cá abaixo. E por ser o Kendrick, um artista com tanto peso, teria sido muito difícil de ignorar para o Drake. Inevitavelmente, ele iria ter de responder e, respondendo, o Kendrick iria ter de responder também. Isto foi muito entusiasmante de assistir, apelou àquele espectador mais juvenil que se calhar ainda temos enquanto consumidores de rap, e foi engraçado testemunhar.”

Ainda assim, relativiza a importância que as diss tracks têm no hip hop. “Participar num beef requer uma disponibilidade que eu tendo a associar à juventude, a uma necessidade de provação, a uma procura pelo desafio e, acima de tudo, a esse gosto pela competitividade. Claro que depois há rappers que podem ser mais ou menos disponíveis para isso. Quando era miúdo, era bastante disponível para essa ideia. Percebo o impacto das coisas situadas no seu tempo, mas, lá está, gosto sempre de olhar para os beefs como um pequeno extra do hip hop, um pequeno apêndice, nunca como o foco principal, nunca como o que de melhor se pode fazer com a palavra no contexto do rap. É algo que eu vejo como um blockbuster de ação, mas no fim do dia sei que o melhor cinema não está ali.”

"Mesmo para o público, continuamos a passar a imagem de que o hip hop é isto. Se calhar no passado era, mas hoje em dia é mainstream, já passa em todo o lado, há crianças a ouvir e continuam a existir estas coisas. Talvez uma criança que cresça a ouvir hip hop pense que o hip hop é isto. Não devia ser.”
Dama Bete, rapper

Por experiência própria, diz que é algo que pode marcar a carreira ou o nome de alguém. “Hoje em dia não o faria por muitos motivos. Um deles porque sei que as pessoas tendem a celebrar muito estes conflitos — e tendem a associar um artista a estes conflitos. Há ouvintes fiéis, que são habituais, mas há outros que não ouvem com tanta regularidade e depois podem ficar ali só com um certo momento associado. E esse momento pode não ser representativo da obra no geral. Acho que essa pode ser uma das desvantagens. Se não tiveres uma expressão forte o suficiente fora do contexto de beef, é possível que corras o risco de ficares marcado e esse beef até falar mais alto do que a tua obra. Felizmente, não sou o tipo mais otimista do universo, mas vivo convicto de que consegui fazê-lo, superar esse destaque que um beef tem. Em todo o caso, continua a ser uma coisa que hoje em dia tento evitar falar, precisamente para não ter nem um bocadinho a mais da atenção que merece.”

A componente mais tóxica da cultura de competitividade no rap

Para Dama Bete, a primeira rapper a lançar um álbum a solo em Portugal, o teor das rimas arremessadas entre Kendrick Lamar e Drake continua a evidenciar a misoginia presente na sociedade e no rap. “Isso continua a fazer muito parte do hip hop, a mulher ser quase um prémio… Continuam a falar em bitches, a dizer quantas têm… É algo que está muito presente.”

Durante o tempo que esteve no ativo, foi alvo de duas diss tracks feitas por mulheres — e tem noção de que outras faixas incluíam rimas que aludiam indiretamente ao seu trabalho. “Sempre escolhi não responder, porque vejo isto como algo negativo, que pode ter consequências negativas. Nisto do Drake e do Kendrick, já houve um tiroteio, o guarda-costas do Drake foi baleado”, aponta, sobre um tiroteio ocorrido a 7 de maio às portas da mansão de Drake em Toronto, no qual um dos seus guarda-costas foi baleado e transportado para o hospital, não tendo havido ainda qualquer indicação sobre os suspeitos ou o motivo do ataque.

“Às vezes acaba assim. Quando estava mais no ativo, em 2008 ou 2009, tive mulheres que me faziam esperas — e eu nunca sequer tinha respondido. Por vezes, as coisas tomam proporções muito negativas e sempre achei que era melhor não ir por aí.” O seu primeiro single, Cala-te, pode ter servido de catalisador para uma série de disputas em seu torno.

“Tive a infelicidade de o meu primeiro single ser o Cala-te, que tem uma letra com punchlines no geral, não era para ninguém em específico, e isso fez com que algumas pessoas sentissem que tinham de responder. E muitas das vezes o público sente-se parte e sente-se no direito de tomar um partido, o que muitas vezes faz com que se tornem agressivos. Torna-se algo quase clubístico. As pessoas começam a atacar-nos na Internet, nas redes sociais, a enviarem-nos emails… Sentem-se no direito de que podem falar connosco de certa forma, e claro que a pessoa tem de ser muito forte mentalmente para não se deixar afetar.”

G Fema e Dama Bete estão de acordo: apesar do entusiasmo criativo que geram, há um lado negativo na cultura das "battles" que pode ter consequências

No seu caso, as diss tracks e o ambiente “tóxico” em torno desta competitividade profunda, que chegou a ultrapassar a música, levaram-na mesmo a afastar-se do hip hop. “Antes de começar a minha carreira, tive um site chamado Hip Hop Ladies em que o objetivo era ajudar na promoção do hip hop feminino. E as duas artistas que fizeram as diss tracks participaram em eventos que eu organizei, e sempre as apoiei. Então senti-me mal com isso. Investi o meu tempo, tentei apoiar principalmente mulheres, e quando há uma oportunidade fazem isto. Hoje, por acaso, voltei a dar-me com elas. Soube ultrapassar. Mas nessa época foi algo que me levou a não querer fazer parte do hip hop e começar-me a ver mais como uma artista fora do hip hop… Ia a um evento e não me sentia bem porque se lá estivessem pessoas que falaram mal de mim… Não estava lá à vontade. E depois também escalou de outras formas. Num dos eventos da Hip Hop Ladies, um porteiro veio falar comigo e disse-me: ‘tens umas raparigas lá fora que te querem bater’. Querem-me bater? Começaram a acontecer estas coisas. Eu tinha um concerto no Parque Palmela, em Cascais, e uma das raparigas que era minha back vocal chegou antes para o soundcheck e disse-me: ‘olha, se calhar é melhor não vires porque tens aqui umas miúdas que te querem bater’. Começaram a acontecer coisas que não faziam parte do meu mundo.”

O caso mais grave aconteceu quando visitou a sede de uma associação num bairro social, no âmbito de um trabalho que estava a fazer para o curso de turismo que estava a tirar. A ideia era reunir crianças para participarem num evento organizado por si e por umas colegas de turma no contexto escolar.

“Quando chego à reunião na associação, tenho um grupo de raparigas que começam a meterem raps e a rimarem por cima, eu estava a achar aquilo muito estranho, tive a reunião e disse a uma delas: ‘se vamos trabalhar juntas, era fixe que isto não acontecesse, porque isto é para as crianças, não é para nós’. E uma delas disse-me: ‘mas quem disse que eu quero trabalhar contigo?’ E empurrámo-nos e começámos as duas à luta. Para mim já era um acumular de coisas que estavam a acontecer que tomou proporções que não estava à espera. Tive de pedir desculpas às minhas colegas, eu não era assim e foi aí que comecei a pensar: isto não me está a fazer bem psicologicamente. Foi quando me comecei a desligar um pouco do hip hop e a focar-me mais noutras coisas, como na minha carreira como designer e developer.”

Dama Bete assume que os conflitos verbais no rap até podem ter alguma “piada ao início”, mas que no geral acabam por não ser benéficos para a cultura. “Porque às vezes no hip hop não está a acontecer nada de jeito e isto faz-nos querer ouvir o que é que aqueles artistas estão a dizer, que podres foram buscar do outro artista, mas depois perde um bocado a piada porque entra muito na vida pessoal… A Nicki Minaj e a Cardi B até andaram à luta. Isso realmente não tem sentido porque é música, é arte, e deveriam estar só a fazer música de forma positiva. Mesmo para o público, continuamos a passar a imagem de que o hip hop é isto. Se calhar no passado era, mas hoje em dia é mainstream, já passa em todo o lado, há crianças a ouvir e continuam a existir estas coisas. Talvez uma criança que cresça a ouvir hip hop pense que o hip hop é isto. Não devia ser.”

G Fema, rapper que começou o seu trajeto há duas décadas, admite que esta é uma componente intrínseca da cultura hip hop e que acompanha os casos de diss tracks, mas ao mesmo tempo também o considera um aspeto “negativo” da cultura. “Faz parte do rap, vai existir sempre este contexto, e as pessoas fazem estas diss tracks para competir  — embora algumas delas também façam por marketing e não necessariamente por mais nada. Gosto de ouvir pelas punchlines, mas é negativo porque muitas vezes dizem coisas sem fundamento, fazem provocações.”

E realça também o papel em que a mulher é usada em muitas destas faixas. “As mulheres são sempre usadas nos disses como forma de provocação. Metem mães, irmãs ou sobrinhas ao barulho, o que não é positivo.” Nunca participou em nenhuma disputa verbal destas nem tem interesse, mas não hesita ao dizer que responderia caso fosse um alvo. “Mas não sou apologista de confusões nem de desrespeito. Às vezes passam da música para coisas mais graves e torna-se um real beef, que é o que traz mais problemas.”

“Se for só superficial, é divertido, está tudo bem. Até é um dos pilares. Mas quando isso começa a entrosar-se com a tua personalidade e passa a ser algo real, começa a tornar-se problemático. E sinto que, comigo, se tornou problemático. Sinto que no hip hop português as pessoas levam-se muito a sério e eu não me levo assim tanto a sério."
João Maia Ferreira, FKA benji price

João Maia Ferreira, que recentemente deu uma entrevista ao Observador sobre como abdicou do nome artístico benji price para se dedicar a uma nova fase da sua carreira, falou nesse momento sobre a toxicidade da cultura do rap e de como as disputas verbais — como aquela que teve com Estraca — em geral já não fazem sentido para si.

“Se for só superficial, é divertido, está tudo bem. Até é um dos pilares. Mas quando isso começa a entrosar-se com a tua personalidade e passa a ser algo real, começa a tornar-se problemático. E sinto que, comigo, se tornou problemático. Sinto que no hip hop português as pessoas levam-se muito a sério e eu não me levo assim tanto a sério. E dei por mim a levar-me a sério demais. Nada contra, adoro quase todas as pessoas que estão dentro do hip hop nacional. Ou seja, não sinto que isto seja um problema individual. É um problema coletivo, é algo sistémico. Não estou a dizer que este ou aquele é um egocêntrico e está a causar este problema. Não, a culpa é distribuída por todos. Isto em algum ponto foi institucionalizado e as pessoas novas que vão entrando herdam isso e tornam-se assim e nem sabem bem porquê. Precisei de me afastar disso.”

O músico acrescenta que “o rap é uma cultura muito competitiva e tóxica”. “Existe muito uma mentalidade de macho alfa, de dizer eu sou o melhor, o mais forte e o mais incrível e bonito, e sou quem tem mais dinheiro. E não quero acrescentar mais a isso. Quando me removi desse tipo de pensamento, tornei-me uma pessoa melhor. Porque só me tornei essa pessoa quando fui para o hip hop, na altura da Think Music. E dei por mim a pensar: eu não sou esta pessoa. Genuinamente que não quero saber do sucesso, das posses e dos feitos dos outros. E houve uma altura em que isso me começou a importar, só que isso não é quem eu sou, não é quem era antes nem quem sou agora. Então tive de fazer aqui um grande trabalho de recondicionamento mental para me tirar desse buraco em que sinto que me enfiei e em que também me enfiaram um bocadinho.”

Sir Scratch faz uma distinção entre as diss tracks e os beefs, que considera casos em que os conflitos ultrapassam a música, a competição saudável e se tornam realmente um problema, muitas vezes já fora do contexto do hip hop. “O beef é uma conversa mais profunda e abrangente. Tem a ver com intrigas, já está ligado a muitas outras coisas, é mais pessoal e vai a um nível… No caso do Kendrick e do Drake, não acho que tenham ido por aí porque ambos deram a entender que não era nada pessoal. Há que perceber e educar que falar em pessoas que estão ao redor — e há muita gente que vê isso como uma coisa super má — é como em qualquer desporto competitivo. No boxe, vais dar socos com a tua força toda, não vais dar devagarinho. Mas, no final do dia, é bom relembrar que foi só um jogo de palavras, um disrespect, como um desporto. Acaba e amigos à mesma, como antigamente havia as desgarradas na rua. Na cultura rap isso também é visto quase como um escape, é a nossa forma de lutar e são as nossas armas. Vou ‘disparar’ para doer, mas não vou fisicamente atacar-te. É dentro deste jogo. Quando acabarem os 90 minutos desta batalha, damos um abraço e está tudo bem.”

Para exemplificar e esclarecer melhor, faz um paralelismo com o futebol. “Sou benfiquista e tenho amigos do Sporting. Posso estar no estádio, num derby, dizer isto e aquilo, mas é só dentro daquilo — eles não são meus inimigos. É um jogo, é no calor do momento. É uma disputa saudável. Existe a parte negativa que é o beef, mas aí já há qualquer coisa a nível pessoal. É uma pessoa que já não gosta da outra, ou um bairro que já não gosta do outro, uma ideologia que vai contra a outra. E às vezes o rap é usado para mascarar isso. Infelizmente depois acabam por haver desgraças. Mas não é o rap que é violento. Há zonas que são violentas onde o rap está inserido — mas essas zonas já eram violentas antes do rap. Se o rap não existisse, a violência não iria deixar de existir. Embora o beef esteja colado à cultura e à história do hip hop, não houve nenhuma altura em que se falou do beef a sério de uma forma positiva. A cena da West Coast contra a East Coast, Tupac contra Biggie, mesmo em Portugal quando houve entre Lisboa e Porto… Nunca ninguém diz que foi um grande momento. Mas nas diss tracks e no battle rap isso pode existir, porque são disputas saudáveis. É a parte desportiva do rap. Eu não me revejo nunca nos beefs e na parte negativa, mas ao mesmo tempo tenho sempre que relembrar que o battle rap faz parte e é bom que continue a fazer parte.”

A Liga Knock Out não só filma e publica as batalhas online, após os eventos em que se realizam, como grava "face offs" — conteúdos de vídeo em que os dois rappers adversários antecipam a batalha

JOSE TRAVASSOS

Nuno Varela admite que, quando era jovem, se sentia estimulado pelos duelos de rimas que atingiam proporções maiores. “Quanto mais agressivo fosse e se calhar se envolvesse algum tipo de violência ficava completamente estimulado — ‘vê lá, apanhou-o na rua, ele tem a mania, disse que era o mais pesado de Queens e afinal não fez nada…’ Hoje em dia vejo mais na lógica de como o rap beneficia disto. Desde que não passe para as ruas e seja só a nível de barras e eles consigam elevar a escrita, a pesquisa que fazem sobre a outra pessoa, sou completamente a favor. E quem me dera que agora acabasse esta e depois aparecesse outra. Até porque isto colocou o Kendrick com uma assiduidade de lançamentos que nunca teve, meteu o Drake a afinar a caneta, por isso acho que quem ganhou foi o rap.”

Ainda assim, alerta para a realidade do drill, subgénero moderno do hip hop com origem em Chicago e que se disseminou sobretudo via Londres, mais associado à marginalidade e a uma vida de rua. Embora não seja a música que provoque a violência e os problemas sociais das comunidades, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) publicado no ano passado em Portugal concluiu que a criminalidade juvenil aumentou 50% em 2022. As autoridades apontaram o dedo ao drill e ao hip hop.

“Enquanto pai de um miúdo de 17 anos, que entra agora nesta nova vibe destes beefs do drill, que fogem um bocado àquilo que o rap levou durante anos e que roça uma linha que nem os próprios rappers que são apreciadores de batalhas e diss tracks estão a par, porque isto leva para um nível de violência e traz uma agressividade… Ao dizer publicamente que gosto de diss tracks ou de beefs, um não entendedor pode meter-me nessa caixa de que é mais um gajo que gosta destes putos do drill, desta vibe que veio de Chicago, que existe muito em Londres e de que Lisboa também sofre um bocado e que não é nada saudável para ninguém — nem para o movimento, nem para os miúdos nem para a sociedade no geral.”

As batalhas como palco máximo da competitividade no rap

Entender e contextualizar a competitividade no rap pode passar por estabelecer um paralelismo com os desportos de combate. Não é uma mera prática informal que acontece por tradição. É uma lógica institucionalizada dentro do movimento hip hop, com uma série de estruturas que organizam regularmente batalhas — sejam mais ou menos profissionais, de improviso ou com rimas previamente escritas — que funcionam como um dos vários circuitos associados ao hip hop.

Nuno Varela estava associado a batalhas de freestyle desde o final dos anos 90, tendo fundado em 2007 a plataforma HipHopSouEu, que contribuiu para a divulgação do rap em Portugal. Em 2012, juntou-se a José Cardoso, da editora e estúdio Headstart Records, para fundarem a Liga Knock Out — uma competição profissionalizada de batalhas escritas entre rappers, onde se deram a conhecer nomes como ProfJam, 9 Miller ou Papillon, que fizeram carreiras na música. Mas muitos outros ficaram sobretudo conhecidos pelas batalhas e são, acima de tudo, battle rappers — foi esta a vertente da palavra que decidiram explorar no seu ofício. “Foi claramente uma coisa inovadora que veio revolucionar o hip hop em Portugal”, defende Varela.

“Como em todas as competições, há momentos em que se torna um bocadinho mais difícil para um dos atletas ter fair-play. Mas as pessoas estão lá todas para o mesmo. Mesmo que haja esse calor à flor da pele, tu vês logo o adversário a abraçá-lo, a tentar acalmar a pessoa, as outras pessoas também."
Shark, Roda o Centro

A Liga Knock Out não só filma e publica as batalhas online, após os eventos em que se realizam, como grava face offs — conteúdos de vídeo em que os dois rappers adversários antecipam a batalha, o que funciona como estímulo para uma certa rivalidade e para instigar uma narrativa em torno da disputa.

“É como os teasers dos combates de boxe, que vão sempre atraindo mais pessoas. Quer tu queiras, quer não, há sempre pessoas que vão cair no favoritismo de outras, o que faz com que automaticamente fiquem contra a outra e que queiram ver aquele sangue que é derramado durante o espetáculo”, explica Varela sobre o conceito. “Acredito que isto possa ser comparado a um desporto. Não sei o que acontece no cérebro ou nas cordas vocais, mas há artistas completamente parados que estão a suar como se estivessem num jogo de futebol. Depois do break, quem sabe em 2050 as batalhas de rap não entrem nos Jogos Olímpicos. São uma performance de alta competição.”

O sucesso da Liga Knock Out ao longo dos anos levou a que outras organizações criassem as suas próprias ligas, com características distintas. É o caso da Smoking Bars ou da Red Bull Francamente. Além disso, a cultura brasileira das batalhas de improviso de rua, com cada vez maior proeminência, fez com que em muitas cidades e vilas portuguesas despontassem rodas locais com batalhas de rap.

Um dos maiores exemplos de sucesso é a Roda o Centro, que veio revolucionar o hip hop na Zona Centro do país e dinamizar Coimbra, com dezenas e dezenas de pessoas a juntarem-se todas as quintas-feiras no skate park da cidade para mais uma sessão.

“No fundo, é o ambiente de desgarrada nos tempos modernos”, explica Shark, o fundador da Roda o Centro. “Nas desgarradas, o pessoal juntava-se para tocar instrumentos, para cantar, para dançar e era quase tudo improvisado. A malta podia levar uma lenga-lenga ou outra de casa, mas a base era muito semelhante. O que importa é a comunidade, o convívio, e a parte de se desafiarem uns aos outros é mesmo para podermos sermos todos melhores.”

Nos eventos que organizam, juntam as outras vertentes da cultura hip hop. Os rappers rimam por cima de beats de produtores locais, há showcases de beatbox, dança e artistas visuais que desenham aquele que será o prémio para o vencedor da noite.

O Roda o Centro veio revolucionar o hip hop na Zona Centro do país e dinamizar Coimbra, com dezenas e dezenas de pessoas a juntarem-se todas as quintas-feiras no skate park da cidade

“Como em todas as competições, há momentos em que se torna um bocadinho mais difícil para um dos atletas ter fair-play. Mas as pessoas estão lá todas para o mesmo. Mesmo que haja esse calor à flor da pele, tu vês logo o adversário a abraçá-lo, a tentar acalmar a pessoa, as outras pessoas também… Estão ali numa troca de ofensas e às vezes pode tocar num ponto bastante sensível, é um trabalho que os MCs fazem todas as semanas. E é uma coisa que eu tento passar também ao público: o pessoal não se pode esquecer de que são pessoas, não são só artistas”, conta.

Natural do Porto, onde estava habituado a conviver com rodas de improviso, Shark está em Coimbra há meia-dúzia de anos e trabalha em diversos projetos artísticos e sociais. Neste momento, sublinha que existem cerca de 25 rodas regulares espalhadas pelo país e a ambição passa, como no Brasil, por criar uma competição com diversos escalões que una toda esta cultura. Por agora, está a desenvolver a Brigada do Centro — a ligação organizada entre três rodas do distrito de Coimbra e duas de Leiria.

“Sinto que a cultura está a fervilhar por aqui. A consequência desse trabalho é que a Red Bull este ano já quer fazer um pré-qualifier aqui na Zona Centro. Há muitas batalhas que por vezes não têm MCs suficientes para fazerem uma edição e nós temos tido sempre MCs a mais. Este ano fizemos uma atividade na Feira do Livro de Soure em que juntámos oito rappers de Soure para atuarem — ninguém tinha feito esse trabalho, de juntar os rappers todos do município para um evento. E acabou o evento da feira do livro e eles passaram a tarde toda a fazer freestyle no skate park. Depois de termos a casa arrumada, queremos ajudar os outros a arrumar a casa deles.”

 
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