Começar uma série com uma discussão sobre o “Esta Balada que te Dou” só pode ser bom sinal para a ficção televisiva portuguesa. Passámos o ponto do cliché, do eterno jogo pelo seguro, ou criámos ao menos o espaço suficiente para que uns e outros produtos possam coexistir: o cliché que paternaliza o público e o que não está preocupado se metade da audiência não vai perceber a piada. Mas logo vem outro golpe mais certeiro: está o Samuel Úria em cena, a fazer de assessor do ministro Marco Delgado, e a discutir se o Armando não terá gamado o Paul Simon. E, a partir daqui, podiam fazer o que quisessem que era difícil estragar isto – e não estragaram.

“Prisão Domiciliária” é a nova série exclusiva da Opto, plataforma de streaming da SIC. Tem a marca cuidada da realizadora Patrícia Sequeira – uma esteta na simetria, na luz, nas texturas – e a quem é creditada também a ideia original: a de um político corrupto preso em sua própria casa. João Miguel Tavares, que assina como uma espécie de head writer da equipa de guionistas, explicou em entrevista ao Expresso que a ideia apareceu em 2014, antes da detenção de Sócrates. Mas a inocência prescreve no momento em que se lança uma série sobre este assunto precisamente no momento em que corre ali ao lado, na vida real, a “novela” Sócrates, agora no período rosa.

Álvaro Vieira Branco, ex-ministro das Obras Públicas e putativo ex-futuro primeiro-ministro, não é particularmente parecido, diga-se, com Sócrates. Na verdade, não é particularmente parecido com ministro português algum; tem mais tiques de autarca, em figura de rock star, com um finalzinho à Tony Soprano. Mas não ajuda que seja “o engenheiro”. Ou que Úria cante no genérico, logo reforçado pela deixa de uma personagem na cena seguinte, o “Bicho Mau” (alguém pediu um animal feroz?).

[o trailer de “Prisão Domiciliária”:]

Claro que está lá, para quem tivesse dúvidas, o disclaimer inicial a garantir que “Esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real é mera coincidência”. Mas, de qualquer modo, a triste realidade, como todos sabemos, a tragédia portuguesa, é que não faltam candidatos à coincidência.

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Volvidos cold opening, genérico e uma cena gráfica como só o streaming permite (Abençoado. Vide também a linguagem, impossível na TV generalista nacional antes das tantas da noite) e já o ex-ministro está de regresso a casa, pulseira eletrónica na canela, três meses de cadeia depois. A ideia – absolutamente ajustada do ponto de vista jurídico, claro – é também um achado do ponto de vista dos custos de produção: um décor resolve quase toda a série, e logo quando esse décor é o Lapa Palace. Pelo menos enquanto David – Afonso Pimentel, porventura a personagem com as melhores deixas – não o conseguir tirar de lá.

“O Regresso” é o primeiro de uma temporada de 10 episódios. Por enquanto, limita-se a lançar os problemas por complicar depois: a acusação de corrupção, tráfico de influências, participação económica em negócio, prevaricação e abuso de poder no caso “Marinada”. A natureza do envolvimento com uma empresária que, por enquanto, é apenas um nome: Liliana Marto. A tensão com a mulher Raquel (Sandra Faleiro), gestora da inevitável fundação da família, subitamente descapitalizada. Os filhos, a mãe de regresso a casa, a equipa de assessores, a PJ e uma visita solidária do primeiro-ministro que está para acontecer “amanhã”. Ficam no ar as boas frases. “Amigos não roubam!”, “Eu andei sete anos a estudar. Eu só cometo legalidades” e a catchphrase de Álvaro Vieira Branco: “Se o problema é dinheiro, então não há problema!”

A ficção segue na Opto, nas próximas semanas; a infeliz coincidência arrisca-se a ficar em cartaz, diz-se, até 2034.