A Frances McDormand que sobe ao palco em 1996 para arrebatar o Óscar de Melhor Atriz pelo clássico “Fargo” não é a mesma que ganhou novamente a estatueta em 2017 por “Três Cartazes À Beira da Estrada”. A primeira, com alguns laivos de timidez, arranjou-se para a passadeira vermelha e fez o discurso clássico, de agradecimento à indústria e com um louvor às nomeadas e às suas “personagens femininas complexas”. Já a McDormand de 2017, em tudo semelhante à de 2021, surge sem maquilhagem, cabelo grisalho assumido, um vestido nada consensual e gritando um discurso rebelde que se tornou na altura viral. Nele, descarta nomes e reconhecimentos e foca-se no tempo de antena que tem ali, naquele momento, em direto para o mundo, em contrarrelógio versus uma orquestra que a vai elegantemente abafar a qualquer momento:

“Estou um bocado a hiperventilar. Se eu cair, levantem-me porque tenho algumas coisas a dizer. (…) Se puder ter a honra de que todas as mulheres nomeadas, em todas as categorias, se levantarem agora comigo. (…) As cineastas, as produtoras, as realizadoras, as guionistas, as diretoras de fotografia, as compositoras, as designers. Olhem ao redor, senhoras e senhores, porque todas nós temos histórias para contar e projetos que precisamos de financiar. (…) Daqui a alguns dias, convidem-nos para os vossos escritórios, ou venham até os nossos, o que for melhor para vocês, e vamos falar sobre nossos projetos. Tenho duas palavras para deixar convosco hoje, senhoras e senhores: inclusion rider (cláusulas de inclusão e diversidade).”

É um gosto ver Frances McDormand envelhecer. Num mundo e numa indústria tão cruel para as mulheres e para a sua cronologia, onde uma cara e um corpo não devem contar a história de décadas, onde até um ícone do “express yourself” como Madonna recorreu frankensteinamente às operações estéticas, Frances está-se a marimbar. Não é a Miss Venezuela 2014, é uma tela para as personagens que escolhe, personagens essas com as quais se envolve cada vez mais: “Nomadland” é um dos projetos da sua vida, nos quais faz as vezes de produtora. Foi McDormand que escolheu a realizadora/guionista/editora chino-americana Chloe Zhao para o projeto, contribuindo ativamente para a tal diversidade da qual falou no seu discurso por “Três Cartazes”. As palavras não foram levadas pelo oboé.

Um Óscar de Melhor Atriz (o terceiro da carreira nesta categoria, só superada por Katherine Hepburn, que venceu a distinção por quatro vezes) é de toda a justiça num filme no qual aparece, literalmente, em todas as cenas. Na primeira versão do projeto, McDormand ia interpretar a personagem Linda May (uma pessoa real, que acaba de resto por aparecer no filme), mas um brainstorming ditou que Frances ia fazer uma personagem ficcional, vagamente baseada em si. O resultado é Fern, uma viúva de meia-idade que deambula pelos Estados Unidos na sua carrinha, sobrevivendo de empregos temporários em armazéns da Amazon ou em parques de campismo. Não podemos exatamente falar de um daqueles casos nos quais o ator se transfigura – a sombra de Frances paira sempre ali, assumida, como que dizendo que se a atriz tivesse tido outro percurso de vida aquela podia ser de facto aquela a sua carrinha com ferrugem. McDormand foi adotada em criança, filha originalmente de uma mãe à qual a própria chama “white trash”. É como se “Nomadland” fosse a vertigem do que podia ter sido, como se a sua protagonista brincasse no precipício da sua realidade paralela, se algo no seu início de vida tivesse guinado para outra estrada.

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A atriz embrenhou-se de tal modo para criar Fern que a carrinha que vemos foi sua durante cinco meses a percorrer sete estados. Os objetos que estão lá dentro também são seus (e há uma cena com um prato partido que mostra bem como as nossas tralhas nos simbolizam, por vezes). Chegou a pernoitar no veículo, até ter percebido que estar efetivamente exausta talvez não servisse assim tão bem o papel. Daniel Day Lewis, tem lá calma contigo.

Mesmo assim, muitos foram os intervenientes de “Nomadland” que viram verdade nos olhos de Frances, completamente convictos de que eram os olhos de Fern. É que de todos os que aparecem no ecrã, apenas três são atores. A fronteira entre ficção e documentário é pouco clara, quase como se estivéssemos perante o Borat do drama (curiosamente, também “Borat 2” foi nomeado este ano para dois Óscares). Um dos intervenientes chegou mesmo a lamentar a viuvez da mulher com quem tinha acabado de conversar, apenas para esta lhe garantir que o marido, o realizador e guionista Joel Coen, estava vivinho da silva.

O matrimónio de Joel Coen e Frances McDormand é, aliás, um caso duradouro e com resultados práticos no grande ecrã. Casados desde 1984, colaboraram numa série de filmes dos irmãos Coen, como “Blood Simple” (1984), “Raising Arizona” (1987), “Fargo” (1996) ou “Burn After Reading (2008)”. Mas McDormand não quis ficar com a enjoativa e redutora etiqueta de musa. Não é uma ninfa pronta a inspirar o escriba marialva, é uma artista e criadora por direito próprio.

Fern é mais uma das mulheres decididas e impactantes que McDormand tem desempenhado, numa escolha criteriosa de papéis. Criteriosa, mas não imaculada:  há um “Transformers: Dark Of The Moon” para pagar a nova bomba para a piscina aquecida. E se é para isso, adorava ver McDormand atirar-se ao Marvel Cinematic Universe. O mundo precisa de uma super heroína forte, dorida e sem medo da pele flácida. No fundo, como a própria já faz quando lhe passam um galardão para as mãos com o mundo inteiro a olhar.