A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, disse esta quinta-feira que compreende que o atual rumo do processo Operação Marquês, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates, representa “uma situação profundamente traumática” para o país, mas recusou fazer leituras sobre o facto de o juiz Ivo Rosa ter rejeitado praticamente toda a acusação do Ministério Público contra os arguidos do mais mediático processo da justiça portuguesa.

“É importante que tenhamos um Ministério Público forte, capaz de acusar quando entende que é para acusar, independentemente de quem tem na frente. E é importante que tenhamos juízes independentes, capazes de tomar as decisões mais díspares, por muito difíceis de sustentar socialmente que elas sejam“, disse a ministra da Justiça durante uma entrevista à TVI24 na noite desta quinta-feira.

Sublinhando que o processo penal tem “uma dinâmica e uma dialética” próprias, Francisca Van Dunem salientou que é fundamental que o MP tenha autonomia para assumir decisões e que o juiz tenha independência para as contrariar. “O MP acusa por homicídio e o juiz considera que são ofensas corporais”, exemplificou a ministra, admitindo que “este caso é rodeado por uma comoção nacional e faz com que esse tipo de análise seja mais marcada“.

“Percebo que para qualquer país esta é uma situação profundamente traumática”, assinalou a ministra. Questionada sobre se partilhava da “perplexidade” manifestada pela Procuradora-Geral da República a respeito da decisão instrutória de Ivo Rosa no caso Marquês, Van Dunem disse que não ficou perplexa e que não tem “esse tipo de estados de alma“, mas disse entender o sentimento de Lucília Gago, que tinha “uma expectativa legítima sobre o trabalho do MP”, que “não se concretizou numa extensão muito grande”. “Foi uma coisa muito significativa“, concordou Van Dunem.

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Lentidão da justiça é “esmagadoramente agressiva” e “insuportável”

A ministra da Justiça foi entrevistada a propósito da Estratégia Nacional Contra a Corrupção, um pacote legislativo aprovado esta quinta-feira destinado a melhorar o modo como a justiça portuguesa combate a corrupção. Um dos aspetos fundamentais da nova estratégia prende-se com o fim dos megaprocessos, que se arrastam durante anos nos tribunais portugueses. Sem se focar particularmente no caso Marquês, Van Dunem disse que os megaprocessos, muito mediatizados, correm o risco de criar expectativas impossíveis de cumprir na sociedade civil.

“A mediatização da justiça gera nas pessoas expectativas erróneas a respeito do fim do processo”, disse a ministra. “Os processos têm métodos e critérios específicos de avaliação da prova que não são os critérios de avaliação comum“, acrescentou Van Dunem. “Corremos o risco de se criarem grandes expectativas que na prática acabam por ser goradas.” A ministra sublinhou ainda que os grandes processos “custam muito dinheiro ao erário público“.

Van Dunem reconheceu também a “lentidão” da justiça portuguesa, classificando-a como “esmagadoramente agressiva” e “insuportável” para a sociedade. “Há coisas que não são aceitáveis”, assinalou a ministra. Referindo-se especificamente ao processo Operação Marquês, admitiu: “Percebo que não seja socialmente sustentável que um processo demore sete anos, venha a demorar mais dois anos em recurso e a seguir em julgamento. É por isso que estamos à procura de remédios”.

Estratégia contra a corrupção não protege Rui Pinto

A ministra da Justiça descreveu ainda alguns dos principais pontos da estratégia contra a corrupção, designadamente a proteção que será dada aos denunciantes. Sublinhando que há “um grande consenso” dentro do setor quando ao rumo que a justiça deve seguir no combate à corrupção, Van Dunem destacou que a nova estratégia permite romper “os pactos de silêncio” da corrupção “sem pôr em causa outros valores“.

A criação de canais de denúncia nas entidades públicas e privadas é um dos pilares da nova estratégia, a par da proteção de quem denunciar — designadamente através de mecanismos que garantam o anonimato dos denunciantes e proíbam as retaliações laborais, como a impossibilidade do despedimento ou outras consequências. Questionada sobre se esta proteção abrangeria, por exemplo, o hacker Rui Pinto, Van Dunem esclareceu que não.

Esta diretiva refere-se a pessoas que trabalhem em organizações“, especificou a ministra. “Alguém ligado a uma organização que, por virtude da sua atividade, tem conhecimento de factos que podem constituir crime.”

“Há a possibilidade de extensão a pessoas que, não trabalhando, têm contacto com quem trabalha”, ou então a “fornecedores ou têm contacto negocial” com a empresa em questão — mas “não abrangerá este tipo de casos, de pessoas que se dedicam a fazer investigação própria“. Porém, Van Dunem lembrou que pessoas como Rui Pinto têm sempre “canais de denúncia públicos”, incluindo a página da PGR, que permite a denúncia anónima de crimes de corrupção.

Tribunal Central de Instrução Criminal pode ser alvo de reformulação

Outro tema com o qual a ministra foi confrontada na entrevista foi a proposta do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que defende a extinção do Tribunal Central de Instrução Criminal — tribunal responsável pelas fases de inquérito e instrução do caso Marquês. Apesar de Van Dunem já se ter posicionado contra a extinção definitiva do tribunal, reconheceu que uma análise daquele organismo com base na proposta do presidente do STJ “é uma hipótese que o Governo pondera”. Questionada sobre se admite a extinção, Van Dunem clarificou: “Não excluo uma intervenção nas eventuais condições em que esse tribunal opera“.

A ministra assinalou ainda que “o grande problema em torno do TCIC não é de lentidão”, mas sim o facto de haver uma “identificação imediata de um padrão de resposta com um juiz e outro padrão de resposta com outro juiz” — referindo-se às características antagónicas de Carlos Alexandre e Ivo Rosa com base no seu historial de processos. “Não é socialmente aceitável que continue a manter-se essa perceção”, que é “agastante para o sistema de justiça”.

Sobre o caso do procurador europeu José Guerra, nomeado após um currículo com erros ter sido enviado para as instituições europeias, Francisca Van Dunem considerou que “as explicações que foram dadas foram suficientes” e até fez notar a “coincidência” de um relatório do Parlamento Europeu em que o caso é mencionado ter sido publicado esta quinta-feira, quando Portugal aprovou a estratégia contra a corrupção. Para a ministra, há sinais de alinhamento “partidário” no modo como o caso foi gerido, mas Van Dunem preferiu elogiar o trabalho de José Guerra, que é “muito apreciado no seio do conselho”.