É uma história matematicamente impossível… ou seria, se todos os envolvidos estivessem a dizer a verdade. Na reunião de sexta-feira da Câmara Municipal de Lisboa, que ditou a exoneração do encarregado pela proteção de dados, a soma dos votos que os partidos assumem daria uma margem menos confortável para a proposta apresentada por Fernando Medina. Mas isso é com base nas declarações públicas dos partidos e vereadores. A realidade é outra: na prática, a proposta ganhou com mais votos do que precisava — o que significa que houve uma mão secreta que deu uma ajuda a Medina, sem assumir o seu voto.

É uma questão de fazer as contas — e essas contas já estão a gerar discórdia e trocas de acusações nos bastidores, sobretudo nos partidos da direita. O voto é secreto, pelo que ninguém sabe, de facto, como votou cada vereador na reunião camarária privada de sexta-feira; apenas se sabem os resultados, que a Lusa noticiou pouco depois. E esses resultados revelam que houve oito votos — o número de vereadores eleitos pelo PS — a favor da proposta apresentada pelo PS, três abstenções e seis votos contra.

Acontece que a oposição toda menos o PCP jura que votou contra. Se isso fosse verdade, o resultado seria diferente; assim, só há duas abstenções (PCP) que estão explicadas, embora haja registo de três; e sete vereadores — mais um do que os resultados anunciados apontam — garantem que tentaram travar a proposta de Medina.

Câmara Municipal de Lisboa aprova exoneração do responsável pela proteção de dados

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O Observador contactou os partidos e vereadores para tentar perceber o que falhou nas contas. O Bloco de Esquerda reafirma, como já tinha dito publicamente, que o seu representante, Manuel Grilo, votou contra a exoneração de Luís Feliciano — o partido emitiu aliás um comunicado em que anunciava esse voto, louvando o “esforço enorme que a equipa de missão levou a cabo nos últimos anos para eliminar velhos costumes, implementar novos processos e formar milhares de funcionários para o cumprimento da nova lei de proteção de dados”.

“A sensibilidade deste caso exige-nos também mais do que encontrar um bode expiatório. Fica a sensação de que o Partido Socialista quer exonerar a única pessoa que fez algo para que este caso não viesse a acontecer“, atacava então o BE. Portanto, apesar de o BE ter um acordo de governação na câmara, o que até poderia fazer do partido a parte mais disposta a deixar passar a proposta de Medina, os bloquistas garantem que votaram contra.

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Com a abstenção assumida pelo PCP — que pediu, durante a reunião, uma suspensão dos trabalhos para conferenciar, não se sabendo se até então tinha o seu voto decidido –, sobram os votos da direita.

Acusações nos corredores da direita

E aqui adensa-se a guerra. Se à esquerda se ouvem críticas em surdina à posição do PCP por ter ajudado a viabilizar a exoneração do funcionário, à direita há suspeitas entre os dois partidos que se uniram à volta da candidatura de Carlos Moedas a Lisboa, mas que nos bastidores se acusam mutuamente de dar a mão a Medina. A conclusão de cada uma das partes, que nos bastidores assumem estar surpreendidas com o resultado da votação, é simples: se os vereadores do PSD estiverem a dizer a verdade, alguém no CDS terá de estar a mentir, ou vice versa.

No PSD, as garantias são claras: tanto João Pedro Costa como Teresa Leal Coelho garantem ao Observador ter votado contra a proposta de Medina, que já tinham criticado publicamente, e ter feito declarações de voto durante a reunião em que expressavam essa mesma intenção.

Resta o CDS, que diz exatamente o mesmo. O vereador João Gonçalves Pereira mostra-se, aliás, indignado por haver quem insinue que os democratas-cristãos poderão ter ‘oferecido’ uma das abstenções a Medina, frisando que havia uma orientação do CDS para votar contra e que esta foi “seguramente acatada”. “O CDS sabe bem em quem votou e os quatro anos de mandato, a liderar a oposição na CML, falam por si. O CDS não tem coligações formais nem informais com Fernando Medina”, atira, lembrando que partiu do partido a proposta, aprovada por unanimidade, para realizar uma auditoria externa na autarquia.

De resto, quase todos os outros vereadores confirmam: Nuno Correia da Silva diz ao Observador que votou contra; Carlos Ardisson, que substituiu nessa reunião o vereador Nuno Rocha Correia, garante que fez o mesmo; só sobra Assunção Cristas, que não esteve presente nesse dia — “era a terceira da semana”, uma vez que tinha caráter extraordinário, explica ao Observador — e se fez substituir por Ana Rita Costenla. Apesar das várias tentativas de contacto, esta vereadora não respondeu durante o dia de segunda-feira, mas já na terça-feira contactou o Observador para assegurar que também respeitou a “orientação” de voto e votou contra.

PS e PCP já tinham travado audição do funcionário

A única outra hipótese que justificaria a abstenção misteriosa passaria por um desalinhamento entre os vereadores eleitos pelo PS — mas, para as contas ficarem certas, alguém na oposição teria de ter votado a favor da proposta e, mais uma vez, mentido publicamente sobre o assunto.

Os votos foram entregues em papel, na manhã de sexta-feira, e ditaram assim a exoneração de Luís Feliciano, que perde o cargo de coordenação da CML — uma das medidas prometidas por Fernando Medina assim que saíram os resultados preliminares da auditoria interna que pediu depois de Observador e Expresso terem revelado o caso de envio de dados indevidos à Rússia, que afinal era uma prática habitual há nove anos.

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A proposta de exoneração fez aliás com que a oposição o acusasse de fazer do funcionário “um bode expiatório”. Há dias, PS e PCP tinham travado a audição desse mesmo funcionário, no contexto da auditoria. Desta vez, mais alguém se juntou a socialistas e comunistas… sem o querer assumir.

Texto atualizado às 9h35 de dia 6 de julho com a resposta de Ana Rita Costenla.