Enviado especial do Observador, em Tóquio

Vamos começar este texto para falar apenas num passarinho. Não daqueles feitos de papel que encheram o céu na parte final da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, no Estádio Olímpico, mas num passarinho grande, com duas pernas, japonês, altamente excitado pelo arranque das provas de boxe na Kokugikan Arena. Apenas e só um passarinho que nos pede para ficarmos com o nome e o telefone mas sempre no registo unofficial.

– Peço desculpa, zona de fumadores aqui, onde é?
– Fumar? Não, não, não senhor, aqui em todooooooo este recinto não se pode fumar.

Rebobinemos um pouco mais o filme. Em virtude dos constrangimentos da pandemia e de todas as medidas que foram tomadas nesse sentido, só a partir do 14.º dia no Japão é possível que um jornalista possa recorrer a outros meios de transporte que não os autocarros da organização. Ou seja, e em termos práticos de trabalho, quase todos andam nesta fase reféns da ditadura das oito ou dez rodas para andarem de um lado para o outro, tendo como ponto central o MTM que concentra todos os veículos que daí partem para os mais variados locais. Neste caso, o caminho é feito em pouco mais de meia hora, para uma zona da cidade ainda desconhecida nestes dias.

Depois de dois dias de feriado, o sábado é ainda mais sábado. Pouca gente na rua, alguns a fazerem um jogging com aquelas proteções nos braços que vão do pulso quase até ao ombro, várias lojas ainda fechadas. Tudo quase normal até a uma estação com várias filas de táxis e autocarros onde a polícia teve de criar um perímetro de segurança para quatro carros dos bombeiros apagarem um incêndio que deixou reduzida uma viatura de caixa aberta à carroceria. O problema estava quase resolvido e já era possível passar sem constrangimentos, a cerca de dez minutos da Kokugikan Arena, com mais pessoas a caminho do Edo-Tokyo Museum, o primeiro museu que foi construído apenas em memória da história de Tóquio com mais de 60 metros e 30.000 metros quadrados. É isso também que o passarinho nos explica, enquanto explica a piscar o olho, de forma unofficial, onde se fuma.

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“Também só descobri aqui este canto ontem, não sabia que existia mas dá-me jeito também. É ali, tem sombra, dá para sentar ou até deitar, muito confortável”, aponta o passarinho, tocando também num ponto que difere da cultura mais europeísta dos maus vícios: para os japoneses, fumar é algo para relaxar, para aproveitar, que dá prazer, que pode servir para manter uma conversa; para nós, nestes contextos, é apenas para despachar. “Vou deixar-te o meu número, anota aí. Agora vou ter de ir, aproveita. Mas tudo unofficial“, reforça.

Mais conhecido como Ryogoku Kokugikan ou Ryogoku Sumo Hall, o espaço com lotação para mais de 10.000 espectadores é normalmente usado para os grandes torneios de sumo, estando construindo de uma forma mais arredondada para que todos possam ver da melhor forma aquele que é um dos desportos rei do país (algo que já se sabia, sendo que aquilo que mais surpreende para quem não conhecia o Japão é a quantidade de campos de basebol e softbol espalhados também por esta zona e com várias crianças a treinarem logo de manhã). Ao mesmo tempo, foi aqui que a Ferrari celebrou o seu 70.º aniversário com direito a um concerto de Paul McCartney. E também funcionou como centro de vacinação contra a Covid-19. Lá dentro, depois de um percurso com vários pré-fabricados que vão funcionando como algumas das salas para a imprensa, as imagens de lutadores de sumo são visíveis numa zona mais cimeira. A música que se ouvia, essa, era a do mítico Rocky.

Para tentarem disfarçar a falta de público, os próprios voluntários decidiram aplaudir a entrada das duas atletas que começavam o dia. Estilos diferentes de acesso ao ringue, músicas bem distintas também, formas de estar no boxe opostas. Marcelat Sakobi Matshu, do Congo, começou no boxe quando estudava Direito na faculdade quase sem querer mas começou a dedicar-se mais a sério depois de ser ter cruzado um dai no ginásio com o campeão nacional Iluga Makabu. “Em 2014 ganhei pela primeira vez um combate. A seguir recebi prémio em Kinshasa, ganhei dez dólares. Uma recompensa tão pequena para tanto trabalho. Boxe pelo dinheiro claramente não é um conceito aqui”, explicou. Já Nesthi Pestecio, das Filipinas, vem de uma família ligada à modalidades, pensou em desistir ainda antes da pandemia mas acabou por conseguir a qualificação tendo o inevitável Manny Pacquiao como grande referência e inspiração. Nenhuma era favorita às medalhas mas iniciar o dia era um prémio.

E como funcionam as coisas na competição? Tratando-se de uma eliminatória da categoria de -57kg, existem três rounds de três minutos cada, com os últimos dez segundos a serem assinalados pelo som de dois paus a baterem entre si. Nas pausas reentramos numa versão mais animada com músicas mais comerciais, dois elementos da organização passam com uma esfregona pela zona dos cantos e tudo é desinfetado ao pormenor nos poucos minutos de separação entre os combates, das cordas aos cantos. No final, a decisão surge por parte dos cinco árbitros que estão nos quatro lados do ringue e os atletas, antes de rumarem à zona mista (que é “normal” entre limitações pandémicas de distância e de número de presentes na sala), passam por um gabinete improvisado de médicos que fazem uma análise rápida ao estado dos atletas, das marcas na cara aos braços e zona do peito. A única nuance entre mulheres e homens são as toucas que algumas atletas usam por causa do cabelo. Antes. depois, todos os atletas são testados, cumprindo os requisitos da organização para evitar novos contágios.

No final deste primeiro combate, Nesthi Pestecio acabou por vencer com naturalidade, seguindo-se um outro combate entre a croata Nikolina Cacic e a americana Yarisel Ramírez que teve mais agitação nas bancadas, com um único elemento da comitiva balcânica e uma quase delegação dos EUA a fazerem um barulho enorme a apoiar as suas atletas antes de uma decisão algo contestada pelo que se passou no terceiro round que terminou com a derrota da estreante norte-americana. Mais uma passagem pelos médicos, mais uma ida à zona mista (e com essa nota de alguns atletas explicarem que não têm um inglês suficientemente bom para falar), mais uma ronda de desinfeções em todos os locais, mais um combate. Assim será nos próximos dias na Kokugikan Arena. Também graças a Ryo, o diretor operacional do local que fala também japonês como inglês com sotaque americano. Ainda se recorda daquele passarinho no início do texto? Ele existiu mesmo mas foi unofficial