Às vezes Little Simz pode ser introvertida, um facto que pode parecer óbvio se tomarmos à letra o título do mais recente da rapper inglesa, Sometimes I Might Be Introvert (ao qual vamos chamar SIMBI, para simplificar), mas que não nos ocorreria a ouvi-la rappar em “Speed”, a oitava faixa de SIMBI: por entre um beat poderoso, uma daquelas linhas de baixo tão grossas que tememos pela saúde da nossa anca e uma grande, grande linha de synth demente, ouvimo-la dizer:

“Don’t you know
you’re dealing with the boss”

A última coisa que nos ocorreria era chamar-lhe introvertida.

Mas a introversão não é obrigatoriamente timidez, antes uma tendência para rodar os olhos para dentro e observar o interior – e se em discos anteriores uma parte do discurso de Simz (inglesa, que nasceu Simbiatu Abisola Abiola Ajikawo em 1994, filha de pais nigerianos, e cuja alcunha entre os amigos é Simbi, que não por acaso é o acrónimo de Sometimes I Might Be Introvert) era voltado para o exterior (o significado social de ser mulher e ser negra, entre outros temas), em SIMBI ela volta o olhar para dentro, uma manobra inesperada numa mulher conhecida por preservar ferreamente a sua intimidade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A capa de "Sometimes I Might Be Introvert", de Little Simz

Ou não tão inesperada assim, se tivermos em conta que mesmo quando abordava temas sociais Simz sempre teve a capacidade de evitar observações genéricas, tornar cada uma das suas linhas em orações únicas – uma palavra que também pode ser usada para descrever a sua escolha de palavras, o seu olhar, o seu flow (um extraordinário e idiossincrático flow). Temas como o género, a violência, a cor da pele e, às vezes, tudo isto em simultâneo, não desapareceram da lista de itens a abordar por Simbi – apenas que a abordagem se tornou mais pessoal: em “Little Q Pt I” e “Little Q Pt II” o alvo da inquirição existencial de Simz é um primo com o qual havia perdido contacto e que acabou esfaqueado; em “I Love You, I Hate You” é a má relação com o pai que toma o palco, numa faixa gigante, que parte de um extraordinário beat, simples acordes de piano e que ganha, através de cordas e coros, uma grandiosidade que rima com a latitude emocional da faixa, que avança entre o amor e o ódio, passando de coração quebrado pela raiva e o perdão.

“I Love You, I Hate You” não é apenas um portento musical ou uma das mais extraordinárias cartas a um pai alguma vez escritas, capaz de colocar um sorriso no rosto de Kafka, ou uma cartografia dos detritos deixados por aquela masculinidade incapaz de refletir sobre si mesma ou transmitir amor aos seus – é um estudo sobre o efeito da infância nos adultos, e por todo o lado em SIMBI a infância abunda, como se este fosse um disco de balanço de alguém que, ao contrário de Dédalo, conseguiu subir a montanha com a pedra das suas próprias inseguranças às costas, e ao chegar ao topo conseguiu observar os eventos à distância.

[Little Simz apresenta “SIMBI” na série Tiny Desk da NPR:]

Mas o que é o topo, em termos de Little Simz? Em termos críticos tem tido reconhecimento, já ganhou prémios do NME ou o prestigiado Ivor Novello e foi nomeada para um Mercury – mas as vendas estão longe do gigantismo. Como se explica isto? Olhar para a família, não a genética mas a musical, ajuda. O círculo de músicos em que Simz se move inclui Michael Kiwanuka, Cleo Sol (que participa no disco) e o produtor Inflo, que juntamente com Cleo Sol constitui a força motriz dos Sault, um projeto de soul electrónica que inclui, em todos os discos, Kiwanuka e Simz, mas que não dá entrevistas, não tira fotos, não faz digressões – e não vende a ponta de um chavelho.

Uma boa parte da melhor música contemporânea tem passado pelos trabalhos de Kiwanuka, Cleo Sol, os Sault e Little Simz, cujos discos são sempre produzidos por Inflo, um amigo de infância. Kiwanuka e Cleo Sol têm sons bem definidos, mas tanto os Sault como Simz disparam em todas as direções – e basta comparar quaisquer duas faixas para se chegar a esta conclusão: “Introvert”, o tema de abertura, tem uma entrada grandiosa, com cordas e coros metais, antes de amainar e dar lugar a uma guitarra acústica e muitos volteios de cordas, por cima das quais Simz com a tensão e a classe de um atleta olímpico a fugir a uma manda de touros enraivecida; os arranjos (de coros, de flautas) volteiam, e acontece tanta coisa aqui que “Introvert” só por si já valeria o discos; quando chegamos a “Speed” o negrume instalou-se, tudo é reduzido a um beat, um baixão e uma linha de synth avariada. Não podia haver faixas mais nos antípodas.

[“Introvert”:]

O resto do disco não foge a esta sobredosagem de ideias: “Two Worlds Apart” é calma, suave, soul, uma faixa lindíssima, em que o flow de Simz se move com a facilidade de uma ginasta no topo da carreira; em “Standing ovation” ela e Inflo voltam à grandiosidade nos arranjos, de novo com coros e cordas a subir e a descer, criando uma tensão cinemática que casa na perfeição com a intensidade do flow de Simz – até que do nada a faixa guina e atingimos a placidez de um lago impoluto cheio de peixinhos e depois regressa à voltagem inicial.

Não é simples identificar um elemento específico que atribua aos discos de Little Simz o charme imenso que eles emanam – são discos que revisitam as heranças da soul e o do r’n’b, que não esquecem o rap old school, que conhecem bem o eletro (do mais negro ao mais dançável e clubby, por vezes quase techno) e que têm uma dívida imensa para com todas as bandas-sonoras alguma vez escritas para cinema.

Mas nada disto soa calculado ou requentado; no processo de re-montagem dos elementos do passado, de os adaptar ao flow de Simz, Inflo e a rapper encontram sempre soluções inesperadas, introduzem curvas onde esperávamos auto-estradas, montanhas no meio da cidade – os discos de Simz são pequenos monstros de Frankenstein cuja matéria-prima é a música de origem negra do passado mas monstros de Frankensteins que se recusam a ser de outro tempo que não este.

[“Point and Kill”:]

Monstro de Frankenstein, contudo, seria uma boa definição para cada um de nós – também nós somos o produto de pais que em algum momento olharam com horror para a sua criação, conscientes ou não da sua responsabilidade no processo; o drama dos humanos é que os monstrinhos têm consciência – de si, dos seus defeitos, dos defeitos que herdaram dos pais, e esses probleminhas não resolvidos dificultam um dia a nossa sociabilidade, intrometem-se nas nossas relações, tornam-se fonte de dor. Nos melhores casos servem de matéria para introspeção e permitem que artistas como Little Simz escrevam discos de uma humanidade extraordinária, sem medo de mexer nas feridas do passado, nas vísceras do que nos torna humanos e falhados.

[ouça “Sometimes I Might be Introvert” na íntegra através do Spotify:]

Algures em SIMBI, Simbi reclama por mais validação (enquanto se pergunta o porquê de precisar de se sentir validada), reclama vestidos Gucci, pelo dinheiro, pelos prémios. Tudo isto estaria certamente ao seu alcance – bastava incluir um par de refrões orelhudos e acessíveis, não fazer de uma canção quatro canções diferentes, limar as arestas. Ao invés, ela preferiu criar um disco intensamente pessoal, mas em que qualquer ser humano que tenha nascido na disfuncionalidade de uma família é capaz de se rever – um disco em que o amor, o ódio, a auto-estima, a família são analisados com coragem e uma empatia humana que vai escasseando nas canções de hoje.

E agora ide comprar o chapéu, só para o tirar para a menina Simz.