Aos 93 anos, Eunice Munõz surge retratada num documentário biográfico de Tiago Durão, com música interpretada por Maria João Pires e Mattias Dobbler e narração de Luís Miguel Cintra e Ruy de Carvalho. A antestreia é a 3 de outubro no Cinema São Jorge, em Lisboa, e a estreia comercial acontece a 4 de novembro.

Segundo o realizador, Eunice ou Carta a Uma Jovem Actriz mostra a grande dama da representação portuguesa nas dimensões pessoal e profissional, enquanto transmite à neta memórias e saberes de mais de oito décadas como atriz. É um filme “entre o quente da casa da avó e o frio do palco austero”, resumiu Tiago Durão, de 30 anos, marido de Lídia Muñoz, de 31, neta de Eunice.

O trailer e dois segmentos do filme foram revelados à imprensa nesta terça-feira de manhã no São Jorge. Viu-se Eunice Muñoz à janela da sua casa, em Paço de Arcos, e depois uma recolha de imagens de arquivo, com o poema de 1971 Eunice, de António Barahona da Fonseca (que foi casado com a atriz) a ser lido por Luís Miguel Cintra.

Num discurso escrito, de cinco minutos, Eunice Muñoz disse que o documentário serve “para deixar ao futuro” a passagem de testemunho à neta. “Uma passagem de testemunho que é minha vontade manifesta”, afirmou. Sentada no centro do palco da sala 2 do São Jorge, acrescentou, referindo-se ao realizador: “Procurou filmar-me como sou: uma mulher normal, como todas as outras, mas que é atriz. Não por escolha, apenas, mas por imposição do teatro.”

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“Ao fim de 80 anos de palco, rodeada de atores, cenários, encenadores e gente de teatro, como eram os meus pais e avós, decidi que era altura de passar o testemunho e de ver continuado o sonho do teatro pela minha neta, Lídia. Um testemunho que passo orgulhosamente e que quis ver registado pelo cinema”, disse. “Acompanhei todas as fases do filme e achei que não podia existir melhor lugar de memória, porque é assim que eu sou, é assim que quero que guardem uma memória de mim.”

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O filme dura 47 minutos e parece ser um olhar demorado sobre cenas do quotidiano doméstico, com registo do convívio entre neta e avó, evocação de poetas, pintores e escritores com quem Eunice se cruzou, além de conter imagens atuais e de arquivo de uma longa carreira iniciada em 1941, aos 13 anos, no Teatro Nacional D. Maria II.

Ao Observador, Tiago Durão explicou que o documentário “procura fazer um desdobramento desta atriz”, pois “existem outras Eunices, para além daquela que vemos” na televisão, no teatro e no cinema. “É também uma mulher normal, nas suas próprias palavras. Estende a roupa, faz o jantar, tem a neta a seu lado. Foi essa Eunice que quis mostrar, dentro de uma casa, rodeada de memórias, com os quadros e os poemas de todos os grandes autores com quem privou. Esta Eunice intercala no filme com a Eunice do palco”, referiu o realizador.

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Inspirado por João César Monteiro

Convidado a fazer o documentário pela própria atriz, Tiago Durão julgou ao início que não estaria à altura do desafio, por estar habituado à linguagem do cinema de ficção — no ano passado, por exemplo, completou os filmes Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente e Alice, Nova Iorque e Outras Histórias.

“Houve aqui um grande compromisso entre elas as duas e a minha visão. Sou por princípio um esteta, gosto da estética e da teoria”, explicou. “Procurei desconstruir o género documentário, por isso é que prefiro dizer que é um não-documentário. Não há depoimentos, pessoas a falarem para a câmara. Há uma linha orgânica. Tentei desdobrar a figura, representando-a de outras maneiras, com o prosaico a tornar-se poético.”

Para a antestreia, a 3 de outubro, serão convidados os amigos de Eunice Muñoz, o Presidente da República e outros responsáveis políticos. O filme será depois exibido na secção Heart Beat do festival de cinema DocLisboa, que decorre entre 21 e 31 de outubro. A 4 de novembro chegará às salas comerciais e para já tem exibição assegurada em 32 ecrãs do continente e das ilhas. A apresentação fora do país é uma hipótese que está a ser tratada, de acordo com o realizador.

Eunice ou Carta a Uma Jovem Actriz tem o apoio da Presidência da República e da Assembleia da República, conjugação que Tiago Durão disse acontecer “pela primeira vez desde o início do cinema português”. Esta informação foi depois considerada pelo próprio como pouco rigorosa. O apoio da Fundação Calouste Gulbenkian levou o realizador a dizer nesta terça-feira que o filme teve dificuldades semelhantes às que em 1968 rodearam a criação do documentário biográfico Sophia de Mello Breyner Andresen, de João César Monteiro. Contou: “Ele decide fazer um documentário poético sobre uma grande personalidade e não há ninguém que o apoie. A Gulbenkian salva esse documentário e deixa que ele chegue aos nossos dias. No nosso caso, a Gulbenkian surgiu como o primeiro apoio. Além desta coincidência, a visão de César Monteiro no seu documentário serviu-me de inspiração.”

Presidente da República condecorou Eunice Muñoz no dia em que a atriz fez 90 anos

Pausa quando nascer o bisneto

Além do realizador, de Eunice e de Lídia Muñoz, estiveram presentes na apresentação  os atores José Raposo e Sofia Grillo, em representação da Casa do Artista, o lar e polo cultural lisboeta que ambos dirigem desde há seis meses. Segundo Tiago Durão, “todo o lucro da bilheteira será doado à Casa do Artista”. “Não há aqui exploração comercial da obra. O cinema pode ser entretenimento, pode ser arte, mas não é comércio”, defendeu.

Além deste filme, os 80 anos de carreira de Eunice Muñoz têm sido assinalado nos últimos meses através da peça A Margem do Tempo, com encenação de Sérgio Moura Afonso, música de Nuno Feist e texto do alemão Franz Xaver Kroetz.

A peça junta Eunice e Lídia e tem produção de Tiago Durão. Estreou-se em abril, fez uma pausa no verão e volta a ser interrompida nas próximas semanas, por causa do nascimento previsto para novembro do bisneto de Eunice — Amadeo, filho de Lídia e Tiago. As apresentações serão retomadas em inícios de 2022 e há a intenção de que A Margem do Tempo termine a carreira daqui a um ano nos dois maiores palcos do país: São João, no Porto, e D. Maria II, em Lisboa.

Notícia alterada às 17h28, com explicação mais exata sobre a relação com o documentário de César Monteiro.