Há coisas que não podem acontecer. Ou melhor, poder, podem sempre, mas na cabeça de quem olha para o futebol não podem acontecer. Contudo, mais uma vez, aconteceu. E logo a quem nunca devia acontecer.

Iker Casillas, um monstro das balizas que começou a escrever a sua história quando estava numa aula e foi chamado de urgência para um encontro do Real na Liga dos Campeões aos 16 anos, estava a menos de um mês de fazer 38 anos naquele dia 1 de maio de 2019. O mesmo Iker Casillas que, ao longo de duas décadas, ganhou tudo o que havia para ganhar no futebol europeu e mundial, no clube e na seleção. Aquele Iker Casillas que se mudou para o FC Porto para um final de carreira longe mas perto de onde ficou sempre a sua cabeça, Madrid. O Iker Casillas que foi somente um dos melhores guarda-redes de sempre.

Nessa quarta-feira de manhã, que deveria ser apenas uma quarta-feira de manhã com treino (neste caso a seguir a um empate dos dragões em Vila do Conde), o espanhol estava num exercício onde fazia algumas defesas na baliza antes de trocar com o companheiro Vaná e passar para a zona ao lado para abdominais. Foi aí que sentiu uma dor forte no peito, depois uma reação estranha na boca e nos braços. Nunca chegou mesmo a desmaiar mas não percebia o que estava a acontecer, ao contrário de Nelson Puga, médico dos azuis e brancos que teve noção da gravidade da situação. Transportado de urgência após um enfarte agudo do miocárdio para o Hospital da CUF, onde estava já uma equipa em alerta e prevenção mal o espanhol chegasse, foi feito o diagnóstico e logo de seguida um cateterismo que resolveu de forma célere a situação, estabilizando por completo o quadro clínico. Ficou como um susto mas seria o final da carreira.

“Estive triste durante, aproximadamente, um mês. Tinha medo de andar, dormir, de fazer qualquer tipo de esforço físico. Era impossível. Agora não estou preocupado, sinto-me bem. Mas também tenho muita medicação para me fazer sentir bem. Creio que só os médicos podem dizer o que posso ou não fazer. Comecei a dar mais valor aos momentos que passo. Às vezes nós, os jogadores, não valorizamos o que temos e não acreditamos que podemos fazer muita gente feliz. E isso mudou”, comentou em entrevista. Dois anos e meio depois, muito mudou na vida do guarda-redes. Anunciou em definitivo o fim da carreira, esteve para candidatar-se à Real Federação Espanhola de Futebol, regressou ao Real Madrid como um dos conselheiros de Florentino Pérez. Houve algo que nunca mudou: a preocupação com casos como o seu. E que continuam a acontecer mesmo que a diferentes níveis, como ocorreu no passado sábado com o argentino Kun Agüero.

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Web Summit: Segundo dia da Web Summit, no Parque das Nações, em Lisboa. Intervenção de Iker Casillas, ex-futebolista. Lisboa, 2 de novembro de 2021. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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“Aquilo que aconteceu com o Kun é mais uma prova de que pode acontecer com qualquer um. Temos a visão apenas do futebol enquanto profissional mas se repararmos a quantidade de jogos que existem em Espanha, em Portugal ou em Inglaterra todos os fins de semana percebemos a dimensão desta realidade”, começou por dizer o espanhol no seu painel no Sportstrade da Web Summit. Ainda com o corpo de atleta que sempre teve mas com uma forma de viver o seu dia a dia completamente diferente depois do susto em 2019.

“O que queremos? Prevenção e prevenção. Os desportistas também sofrem de stress, de ansiedade. Também podem sofrer um enfarte. Há dois anos estava num treino, tive um enfarte do miocárdio e a sorte foi que o médico do meu clube, o FC Porto, atuou de forma rápida. Depois de tudo aqui, quando me disseram o que tinha acontecido, porque foi tudo muito rápido, fiquei perplexo. Hoje tenho uma vida normal. É certo que tens sempre um pouco de medo mas tomo a medicação, faço exercícios, estou controlado pelo cardiologista”, contou antes de explicar a associação à Idoven, uma start up espanhola de cardiologia digital.

“Ficas sempre com imensas dúvidas, de como é o dia a dia, e explicaram-me. É algo tão sensível mas tão eficaz que percebi que tinha de ajudar. No futebol jogas muitos jogos, existe todo o stress das vitórias e das derrotas, as finais, torna-se complicado controlar a parte emocional. Deu-me a garantia que podia viver o meu dia a dia com confiança. O problema é que só se fala destes casos quando acontecem a um nível mais profissional quando acontece todos os dias e pode acontecer até num jogo de crianças. O que aconteceu aos meus companheiros depois do meu caso? Todos se submeteram a uma prova de esforço, houve um maior controlo das questões de coração, quem tinha mais de 35 anos ficou com um pouco mais de receio. Os clubes preocupam-se mais porque o número de jogos aumentou, há mais stress emocional”, disse, antes de andar a “fintar” os jornalistas depois do seu painel que encerrou a parte da manhã no Sportstrade.

Manuel Marina Breysse, cardiologista que é co-fundador e CEO da Idoven, deixou também o alerta para o número de casos de problemas de coração que existem e explicou também como funciona o projeto que tem vindo a internacionalizar-se e a crescer, não só em solo europeu mas também na Ásia e na América.

Web Summit: Segundo dia da Web Summit, no Parque das Nações, em Lisboa. Intervenção de Iker Casillas, ex-futebolista. Lisboa, 2 de novembro de 2021. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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“Este é um problema que acontece a cada dois segundos. Vimos agora com o Kun, que esperamos que seja algo mais benigno, mas manifesta-se também num campo de futebol. O importante é a prevenção e a nossa plataforma que usa tecnologia e inteligência artificial pode ajudar jogadores, médicos, hospitais e clubes. Chama-se a isto morte súbita mas é algo que não gosto porque isso faz com que pareça que não podemos fazer nada quando podemos, a tecnologia tem desenvolvido novas ferramentas e criado algoritmos que ajudam a diagnosticar e prevenir, sendo um campo com muito para crescer”, salientou o espanhol.

“O desporto deve ser praticado sem medo mas com segurança. Só tivemos um caso que ainda recordamos com muito carinho, o Tomás, que teve um problema que não podíamos fazer nada. Isto funciona quase como a Alexa, um software que se encontra numa Cloud a que chamamos William, em homenagem à pessoa que inventou o eletrocardiograma, William Einthoven. É como um cardiologista digital a quem enviamos e que já tem 1.600 gigas de memória RAM. Existe em todas as idades, sendo que os mais jovens são problemas mais congénitos, que existiam mas que não eram conhecidos. A partir dos 35 anos há outros fatores”, acrescentou.