O primeiro-ministro falou pela primeira vez desde que o Orçamento do Estado para 2022 foi chumbado no Parlamento e garante que o Governo esteve “a negociar até ao último minuto”. Virada essa página e a poucos meses de ir novamente a votos, António Costa não deixou de revelar a sua preferência: ter maioria absoluta.

Em entrevista à RTP, e ainda que se tenha esquivado a pedir expressamente a maioria absoluta, Costa fez questão de recordar o seu papel como presidente da Câmara de Lisboa que teve duas maiorias absolutas (em 2009 e em 2013). “O António Costa foi sempre o mesmo, com ou sem maioria. A única coisa que mudou foi a forma como os outros se relacionavam comigo.”

Lembrado o legado, o socialista reforçou a importância da “estabilidade política” e garantiu que mesmo que tenha maioria absoluta “não deixará de dialogar” e que se tal acontecer não deixará de haver fiscalização ao Governo. “Claramente não é perigoso. Com maioria ou sem maioria não deixarei de dialogar. E não deixarei de dialogar com o PSD”, afirmou.

Costa repetiu, de resto, uma ideia deixada horas antes por Carlos César ao Observador. “O PS não exclui, ambiciona mesmo, consensos partidários mais vastos e densos”, disse o presidente socialista. Ora, e isso inclui também abrir a porta ao diálogo com o PSD.

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Nesta entrevista, o socialista foi confrontado com uma frase que disse ainda em 2020 e que marcou daí em diante a relação com Rui Rio: “No dia em que a subsistência deste Governo depender de um acordo com o PSD, nesse dia este Governo acabou.”

Na resposta, o primeiro-ministro marcou a diferença de circunstâncias. “Os políticos quando vão a eleições assumem compromissos e devem honrá-los. Em 2019, disse aos portugueses: ‘Recandidato-me para dar continuidade à geringonça’. Teria traído o meu compromisso com os portugueses e não teria sido leal com os meus parceiros se agora lhes virasse as costas dissesse: ‘Vou negociar com o PSD porque me dá mais jeito’. Isto era sério? Nem eu faria isso. Agora, se me pergunta se repito a mesma frase, não posso hoje dizer que vou dar continuidade à geringonça quando ainda hoje a direção do PCP diz que não quer mais geringonça ou quando Catarina Martins diz que é preciso tirar António Costa da liderança do PS para voltar a haver entendimentos à esquerda. Não posso dizer a mesma coisa aos portugueses“, disse Costa.

“PS não exclui, ambiciona mesmo, consensos partidários mais vastos e densos”, avisa Carlos César

Na residência oficial de primeiro-ministro, António Costa abordou depois a possibilidade de voltar a falhar a maioria absoluta. Nesse cenário, o socialista voltou a abrir a porta à reedição da geringonça, ainda de que forma evasiva.

“Há muitas formas de estar na vida, há quem olhe para portas e veja fechaduras e há quem olhe para a porta e veja a maçaneta para a abrir. Em eleições temos de ter humildade de perceber que quem escolhe os resultados são os portugueses”, disse Costa, antes de acrescentar: “Depois destas eleições nada será como dantes”. O quê? Não explicou.

Ainda assim, e mesmo resistindo em hostilizar abertamente a esquerda, o primeiro-ministro deixou um claro apelo ao voto útil no PS. “O referencial de estabilidade é o PS. Se [BE e PCP] optaram por ser partidos de protesto, tenho de aceitar”.

O líder do PS entende que “esta geringonça acabou” e voltou a apontar aos eleitores que, em 2019, escolheram dar força à geringonça e votaram no BE e PCP. “Foi um desperdício de oportunidades”, atira, falando da maioria de esquerda ao mesmo tempo que se dirigiu à câmara para pedir aos portugueses: “Que nos deem força para podermos governar de forma estável os próximos quatro anos.”

Se a maioria absoluta falhar, então Costa assume que procurará “um entendimento duradouro com os parceiros”, referindo-se ao PCP e ao BE. “Não havendo maioria estável e duradoura do PS, tem de haver um entendimento duradouro”, disse o primeiro-ministro, sem detalhar se é obrigatório que isto passe por um acordo escrito com esses mesmos parceiros.

O socialista falou muito por alto sobre a direita, dizendo que esses partidos “têm primeiro de se arrumar a si próprios”. Recusou “imiscuir-se em questões internas”, mas lembrou os Açores e sublinhou que quando o PSD “procurou o Chega” para governar quando precisou.

Costa poupa Marcelo

Muito contido nas críticas aos partidos à esquerda do PS, Costa reafirmou que “o Governo fez tudo para ir ao encontro dos parceiros”, mas recusou entrar em “processo de intenções” sobre o que levou o BE e PCP a votarem contra a proposta do Governo que acabou por conduzir à dissolução da Assembleia da República quando o Governo “foi ao limite do limite” na negociação.

Sobre as negociações concretas, Costa disse que “houve dois pontos que bloquearam a negociação”: o aumento do salário mínimo e a sustentabilidade da Segurança Social. “O que nos era proposto pelo PCP [no salário mínimo] era subir mais no próximo ano do que nos quatro anos da legislatura anterior. Era muito fácil para mim dizer sim, mas era responsável?”, questionou. Aqui, o primeiro-ministro socialista falou nas dificuldades que as empresas teriam em acompanhar este aumento depois da crise pandémica. “É preciso ser realista e ver se há condições“, afirmou.

Depois, serviram de bloqueios as propostas defendidas pela esquerda para a Segurança Social. “As reservas da Segurança Social aumentaram em 22 anos, foi essa força que permitiu responder como respondemos a esta crise”, continuou Costa, dando exemplo os apoios dados pelo Estado ao layoff. “Se enfraquecermos a Segurança Social hoje perdemos capacidade de resposta a crise que possa surgir”, argumentou.

Na hora de apontar o dedo, Costa resistiu. “Não vou querer andar a abrir feridas que importa sarar. Tenho-os ouvido e não vou responder. O país não quer tricas políticas quer que nos concentremos a governar”, atirou, afirmando ainda que “os portugueses sentem que os políticos não tiveram respeito pelo sofrimento” que tiveram nos últimos anos. Ainda assim, Costa deixou escapar: “Se tivesse havido vontade, o Orçamento não tinha chumbado.”

Sobre o papel de Marcelo Rebelo de Sousa neste processo, Costa revelou que o Presidente da República avisou em privado que diria em público que se não houvesse Orçamento dissolveria a Assembleia da República. “Ninguém pode dizer que foi enganado pelo Presidente da República”, disse Costa sobre os partidos que votaram contra o Orçamento mesmo sabendo que a consequência direta eram eleições antecipadas. “Não é possível apontar o dedo ao Presidente. Restava-lhe escolher a menos má de todas as más soluções.”

Quanto à possibilidade de governar em duodécimos, Costa admitiu que esteve em cima da mesa e que estava “preparado” para essa solução. “Quem governa tem a obrigação de estudar e analisar todas as soluções e informar quem de direito estudámos e informámos o Presidente da República”, disse assumindo que seria um caminho “difícil”.

Questionado sobre as matérias que o Governo pode legislar, porque não foi demitido, Costa diz que o Executivo “fará tudo o que é normal fazer para aumentar o salário mínimo” para 705 euros no próximo ano, mas que vai negociar na concertação social que já está convocada para esse efeito.  O mesmo para o aumento dos funcionários públicos e para a atualização automática das pensões.

Já sobre o aumento extraordinário das pensões, Costa esclareceu que não e argumentou que “o Governo tem legitimidade política limitada”. “O Governo deve fazer decisões correntes. Outra coisa são medidas de natureza extraordinária“, disse enquadrando neste grupo o aumento extra das pensões. Ainda assim, o primeiro-ministro deixou o anúncio: se ganhar eleições, esse aumento extra, tal como será aplicado de forma retroativa a partir de 1 de janeiro.

Por fim, Costa foi questionado sobre a sua reeleição e se recandidatará à liderança do PS: “Se tiver condições para ser primeiro-ministro com certeza que me recandidato“, diz. Se perder as eleições? “Não ficaria na liderança do PS e isso significaria abrir um novo ciclo de governação”, rematou.