Toby Fleishman é um recém-divorciado a ajustar-se como pode à nova realidade que enfrenta — ou seja, está obcecado com aplicações de encontros online, uma forma muito eficaz de ocupar o tempo sem ter de lidar realmente com o que se passa na vida dele. De repente, surpresa, a ex-mulher larga os filhos de ambos em casa dele a meio da noite, um dia antes do combinado, e desaparece sem dar qualquer explicação. O caos instala-se e assim começa “Fleishman em Apuros”, a nova série da Disney+, que acaba de estrear-se, com todos os episódios já disponíveis (são oito no total).
Inicialmente, esta parece uma história de mistério, onde a pergunta mais importante é “onde está Rachel?”, a ex-mulher (interpretada por Claire Danes). Porém, a narrativa é bem mais complexa do que isso — ou talvez mais simples, depende da perspetiva. É que esta é uma história “sobre tudo”, como dirá uma das personagens e narradora, Libby (Lizzy Caplan), mais para a frente. É sobre os planos muito claros que traçamos para as nossas vidas aos 20 anos e sobre como olhamos para eles, no retrovisor, quando temos 40. Chegámos lá? Valeu a pena? O que é que sacrificámos pelo caminho?
Não é possível sair dos oito episódios sem questionarmos as nossas escolhas, mas, antes de nos perdermos em questões filosóficas e instrospetivas, vamos à narrativa.
[o trailer de “Fleishman em Apuros”:]
Adaptada do livro de Taffy Brodesser-Akner pela própria, a série tem algumas falhas, mas também tem um trunfo imbatível: o elenco. Jesse Eisenberg é Toby, um homem zangado e ressentido — com o falhanço do casamento, com as ambições da ex-mulher, com o novo apartamento onde nem o ar condicionado funciona. Fala muito depressa, anda muito depressa, tudo de forma atropelada e desajeitada com Eisenberg a fazer lembrar uma versão mais jovem de Adam Sandler. Ele é médico e o único desejo que tem é o de tratar e curar pessoas, não está preocupado em chegar ao topo da hierarquia do hospital. Isso é um problema: é que, aqui, ser médico é coisa pouca. Toby — percebemos pelos inúmeros flashbacks nos episódios que nos levam até pontos do passado — movia-se, quando era casado com Rachel, num círculo onde os homens são magnatas e milionários e as respetivas mulheres ocupam o tempo a contratar decoradoras para renovar as 7 mansões que representam uma taxa de esforço muito reduzida. Esse é o núcleo a que Rachel deseja pertencer e, condicionados pela visão de Toby, também nós, espectadores, desprezamos a personagem por isso. É uma snob que quer controlar o círculo de amigos dos filhos pré-adolescentes, viver num apartamento com um pé direito muito alto e passar férias nos Hamptons. No entanto, não devíamos já saber que todas as histórias têm duas versões?
A versão de Rachel só a conhecemos na segunda metade da temporada. Até lá, somos equipa Toby — nós e os amigos dele, com quem retoma o contacto após os 15 anos de casamento que o mantiveram numa bolha. Libby e Seth (Adam Brody) passam o verão a ouvir as queixas de Toby. E elas têm razão de ser: que tipo de mãe é que abandona os filhos em casa do ex e nunca mais atende o telefone ou responde a mensagens? O que é que Toby faz agora com duas crianças 24 horas a seu cargo? Como é que explica aos filhos que a mãe provavelmente nunca mais vai voltar? E como é que gere as obrigações no hospital? E as suas aventuras nas apps de encontros? Façamos aqui um parêntesis para analisar o sucesso de Toby nestas redes. Segundo a narrativa, depois de anos como um crominho na faculdade, de repente todas as mulheres de Nova Iorque o querem, virtual e pessoalmente. Calma, nem Jesse Eisenberg virou um Brad Pitt aos 40 anos, nem todas as mulheres estão assim tão desesperadas pelo primeiro homem disponível que aparece.
Apesar deste à parte, a série ganha pontos por dar ênfase ao papel das mulheres na sociedade, àquilo que se espera delas e aquilo que elas querem realmente. Primeiro, a história passa-se em 2016, em pleno período eleitoral nos EUA, quando ter Hillary Clinton como presidente parece um cenário óbvio. Em segundo lugar, a narradora é Libby, a amiga de Toby. Inicialmente, parece uma mera espectadora, mas as mudanças começam a surgir quando ela própria questiona o estado a que a vida chegou — largou uma carreira falhada como jornalista numa revista masculina para ser agora uma dona de casa ainda mais frustrada e perdida. “Como é que cheguei aqui?” é uma pergunta frequente e comum a todas as personagens.
Libby passa de passageira a condutora da história quando, graças a ela, descobrimos a versão de Rachel. Não é que não suspeitássemos que houvesse alguma explicação para um desaparecimento tão repentino, mas ele só chega quando Libby e Rachel se cruzam na narrativa. Entra então em cena a versão de Rachel — não apenas o relato do que aconteceu depois de deixar as crianças em casa do pai a meio da noite, mas também toda a história até chegar àquele ponto. Essa é a verdadeira explicação. E aqui já não é possível desprezar Rachel. Uma infância de abandono, o medo constante de ficar sozinha, a subida na carreira apenas graças a ela, assédio, violência obstétrica, depressão pós-parto, o pânico de dar tudo aos filhos para que eles nunca passassem pelo mesmo que ela, um esgotamento. Dito assim, parece que estamos a fazer uma lista de compras para o supermercado. Porém, “Fleishman em Apuros” é inteligente e ponderada a abordar cada um destes tópicos, não se limita à elaboração de uma salada russa de temas que incomodam. Rachel sempre esteve em sofrimento e foi ignorada, muitas vezes por Toby. Ignorada quando lhe contou do assédio do chefe e quando o verdadeiro choque do marido teve apenas a ver com ele próprio: “Mas ele não sabe que tens marido?” Ignorada quando, no parto da primeira filha, sofreu de violência obstétrica, e Toby se focou num pormenor que ela exagerou limitando-se a empurrar um panfleto de um grupo de apoio para as mãos de Rachel e a dizer-lhe “acho que precisas de ajuda”.
Não é que Toby passe de vítima a vilão a meio da temporada. O que ganhamos é perspetiva. Não há bons nem maus, há simplesmente pessoas que se apaixonaram perdidamente e que se perderam pelo caminho, ao tentarem atingir os seus objetivos e ao lidarem com as próprias inseguranças, sobrando pouco tempo para olhar para o lado.
Claire Danes dá, como sempre, tudo o que tem a este papel. É ela a estrela de um elenco incrivelmente bem escolhido. Apenas dois pequenos reparos: as perucas que lhe arranjaram para as cenas do passado parecem compradas na loja da esquina e os momentos de choradeira colam demasiado a atriz ao papel que interpretou durante anos em “Segurança Nacional”. Tirando isso, ela é vulnerável, batalhadora, insegura, gananciosa, carinhosa, fria, tudo separado e tudo ao mesmo tempo. Luta sozinha e sofre em silêncio, sem direito a queixumes. Será que não é isso que se espera de todas as mulheres? A questão estende-se até Libby, a lidar com o próprio caos, e para este lado do ecrã.
Podem dizer que “Fleishman em Apuros” deixa de fora muitas questões preocupantes da atualidade. Estamos na bolha do chamado “privilégio branco” — onde até Toby explica aos filhos que o problema das grandes cidades é não se ver o por do sol, porque as pessoas vivem enlatadas em prédios em vez de terem mansões com jardins gigantes, o que não deixa de ser uma cena irónica —, mas a história levanta questões que vão além da realidade daquelas personagens.
Cada um de nós, dependendo do estado dos nossos casamentos, carreiras, objetivos, ficará a debater-se com questões distintas depois de ver a série. Numa das suas vozes-off, recordando os seus 20 anos, quando tinha todas as possibilidades pela frente, Libby diz:
“Não percebi que o verdadeiro poder era não ter obrigações. Não acredito que o tive por tão pouco tempo e como fui tão rápida a abrir mão dele.”
Será que não nos aconteceu o mesmo a todos, na ânsia de irmos para o mundo e sermos bem sucedidos, termos filhos, comprarmos uma casa? “Fleishman em Apuros” larga a bomba: tomem lá estas questões e agora vão analisar a vossa vida. Parabéns, agora estamos todos em apuros.