Um dos mais infames projetos da história do cinema pode estar prestes a ver a luz do dia: “Napoleão”, o “filme perdido” de Stanley Kubrick sobre a vida do general e ditador francês, deverá ser adaptado em formato de minisérie pela mão de Steven Spielberg.

O anúncio foi feito pelo próprio Spielberg na terça-feira, durante uma conferência de imprensa no Festival de Cinema de Berlim. O realizador descreveu o projeto como uma “grande produção” baseada no argumento original de Kubrick, que está a ser preparada em colaboração com a viúva do cineasta Christiane Kubrick e com Jans Harlan, produtor executivo de todos os filmes de Kubrick desde a década de 1970 até à sua morte em 1999. Ao invés de um filme, será adaptado numa minisérie em sete partes para a HBO.

De acordo com o site da especialidade Deadline, o projeto ainda está em fase de desenvolvimento mas, ao que tudo indica, estará perto de receber luz-verde por parte da HBO para começar a produção.

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O anúncio de Spielberg marca um novo capítulo numa saga de produção que já dura há vários anos. A adaptação de “Napoleão” tem sido discutida desde pelo menos 2013. Em 2016 o realizador Cary Joji Fukunaga, responsável por séries como “True Detective” (2014) ou, no cinema, “It: Capítulo Um” (2017), preparava-se para dirigir a minisérie, partindo de um argumento do dramaturgo David Auburn — uma versão do projeto que nunca chegou a acontecer.

Amigo pessoal de Kubrick em vida, o próprio Spielberg não é estranho a dar vida a projetos que o realizador nunca chegou a produzir. Notoriamente, foi pela mão de Spielberg que o filme “I.A. — Inteligência Artificial” foi lançado em 2001, depois de Kubrick ter morrido antes de conseguir completar a sua versão, preparada ao longo de 20 anos e baseada no conto Supertoys Last All Summer Long (1969) de Brian Aldiss.

O melhor filme de sempre que nunca chegou a ser feito

Um dos mais importantes marcos da carreira de Stankley Kubrick, “Napoleão” começou a ser pensado nos anos 1960 e, ao longo das décadas, alcançou um estatuto quase lendário junto de cinéfilos e fãs da obra do cineasta como um dos maiores “filmes perdidos” da história do cinema. O realizador tinha originalmente planeado o filme como a sua próxima produção a seguir a “2001: Odisseia no Espaço” (1968).

“Barry Lyndon”: o esplendor de Stanley Kubrick restaurado

O trabalho de pré-produção foi meticuloso: Kubrick viu todos os filmes sobre o ditador francês produzidos até então, leu várias biografias e, com a ajuda de assistentes, traçou uma detalhada cronologia das atividades de Napoleão e do seu círculo íntimo durante os anos das Guerras Napoleónicas (1803 a 1815). Chegou mesmo a escrever uma primeira versão do argumento, que anos mais tarde viria a ser publicada na internet para consulta pública. David Hemmings, primeiro, e Jack Nicholson, depois, foram os escolhidos para interpretar o general, e Audrey Hepburn era a favorita para o papel da sua mulher. Cartas enviadas pelo cineasta aos financiadores do projeto revelam a confiança de Kubrick de que “Napoleão” seria “o melhor filme de sempre”.

A escala do projeto impressiona ainda hoje: o filme seria filmado em três países — França, Reino Unido e Roménia — e contaria com a participação do exército romeno, que disponibilizou 40.000 soldados de infantaria e 10.000 de cavalaria para simular as cenas de batalha.

No final, a visão de Kubrick provou ser demasiado ambiciosa e os custos de produção demasiado grandes para justificar o investimento. O falhanço comercial de “Waterloo” (1970) — curiosamente também relacionado com Napoleão — bem como do lançamento no Ocidente da adaptação soviética de “Guerra e Paz” (1968) ditaram o cancelamento do filme de Kubrick. Grande parte do trabalho de preparação viria a ser reaproveitado pelo realizador aquando da produção de “Barry Lyndon” (1975).

Em 2019, Jan Harlan disse à BBC que Kubrick nunca equacionou retomar “Napoleão”, uma vez que “sabia que não seria capaz de fazer jus à sua visão meticulosa a menos que pudesse fazer um filme de longa duração e com um grande orçamento”. Na altura, o produtor sublinhou que o formato e as lógicas de produção para TV eram completamente diferentes e não permitiriam um projeto desta envergadura. “Isso claro, mudou”, acrescentou.

Fotografias de Stanley Kubrick em exposição no Centro Cultural de Cascais