Das melhores coisas da vida é estar no sítio certo para escutar conversas, sem que do outro lado haja alguma coisa que possa ser feita. Os restaurantes são ideais para esta atividade que ainda não engorda nem paga impostos e estou certa de que terei companhia neste plaisir de ouvir desconhecidos que não voltarei a ver, uma ocupação antiga que não pratico tanto como gostaria, agora que estão todos ao telemóvel. Não se choquem, porque os deuses estão do vosso lado. Sendo verdade que capto todas as conversas que consigo, esqueço-as assim que me levanto do meu lugar, é como se fizessem parte da refeição, também não trago comigo o saleiro e o pimenteiro. Se precisasse de mais pontos fortes, o ziguezagueante do enorme balcão de madeira do Galeto (na avenida da República em Lisboa, muito perto da praça do Saldanha), teria mais este: é um local maravilhoso para ouvir o que se finge não escutar.

Guardado por entregadores delivery que aguardam à porta do McDonald’s ali ao lado, onde esteve em tempos a Colombo, o restaurante snack-bar Galeto está no mesmo sítio desde julho de 1966.
Voltei lá há umas semanas porque ouvi comentar que hoje em dia o Galeto funcionava na prática como a Livraria Lello de Lisboa, ou seja, um ‘spot’ em funcionamento que se visita como uma exposição viva. Fui confirmar a analogia, adorei e aproveito para perguntar o que perguntei à minha amiga Leonor quando fomos almoçar: há quanto tempo não passa no Galeto?

No Galeto, as paredes parecem forradas com Ferreros Rocher, mas é pura e imbecil ilusão, já que a decoração é genuína e intensamente modernista, uma das poucas maravilhas lisboetas dos anos 60 que se mantém intacta. É dos melhores testemunhos vivos do trabalho magistral dos arquitetos Joaquim Bento d`Almeida e Victor Palla que desenharam quase tudo no Galeto para que o Galeto fosse o que ainda é: um snack-bar único, moderno, de inspiração internacional em plenas avenidas novas lisboetas. Sem que nos cobrem ainda bilhete (ao contrário do Lello), quando vamos ao Galeto, estamos a entrar numa obra prima de arquitetura, design e decoração, onde os detalhes nos interpelam constantemente (olhem para os suportes do ketchup e da mostarda, desenhados pela dupla, quando se sentarem ao balcão e perceberão onde quero chegar). Isto é importante porque saber ver e conhecer o que se vê é uma coisa maravilhosa, que se deve aprender: no Galeto, até podiam servir sanduíches de serradura, que o dia estaria sempre ganho.

Antes do balcão, passamos por uma zona de pastelaria impecável, onde não faltam caixas de chocolate expostas, como as que a minha tia guardava no armário da sala para as visitas, até sermos guiados por um simpático e determinado chefe de sala para o nosso lugar ao balcão. O desenho surpreendente recordou-me a pista de automóveis descomunal que o meu primo Jean-Claude tinha montada na garagem, em Lyon.

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Reparei que o acesso para a sala da cave estava fechada, mas não faz mal, porque era ao balcão, precisamente concebido para ser confortável da mesma maneira para pessoas acompanhadas ou sós, que queria voltar.
A Lello tem suas as escadarias, o Galeto tem o seu balcão e em ambos os casos abunda a madeira. Muita da magia está aqui e no caso do restaurante, as paredes de madeira entalhada envolvem e protegem-no. Gosto sempre de panneaux en bois, porque vejo na madeira, sobretudo na maciça, as pequenas marcas de uso que assinalam a passagem do tempo, da história. Além disso, odeio o brilho foleiro (désolé pour le mot!) do alumínio, essa erva daninha das cidades, tão usado neste país.

O frio no exterior ficou lá fora e uma escuridão inteligente dá-nos um ambiente amável, com cada lugar a merecer um foco por cima, como se fôssemos atores num filme onde trocaremos olhares com desconhecidos fascinantes. Quase que aposto que “onde é que isto vai parar”, terá sido o pensamento que mais atravessou os clientes do Galeto desde que abriu as portas. Relações, segredos, zangas, combinações, pactos, àquele balcão muita coisa terá sido dita e escutada entre os célebres “combinados”, pregos, cachorros e as famosas tostas.

Sentámo-nos em lugares confortáveis, com vista para a gente que ali estava. Pelas vozes e conversas, havia turistas, pessoas do Porto e outras regiões de Portugal e, claro, os mais  égocentriques lisboetas, meio chateados porque o seu local de eleição anda a ser invadido por curiosos e que nestes dias parecem ter todos cara de professores de Ciências da Natureza ou Geografia. Talvez seja impressão minha, influenciada pelas imagens da greves que temos visto, mas a dois lugares de mim celebrava-se um aniversário e recordo-me vagamente de terem falado da escola publique.

A Leonor pediu o célebre bife à Galeto (17.90), que chega com ovo, fiambre, pickles, afogado num molho aguado e delicioso (diz ela), com um prato de frites caseira em palitos e esparregado (o Meia Meia, como se chama). Apeteceu-me o Tártaro, outro clássico (19,90) mas tinha comido bouef na véspera e para mim era dia de peixe, pelo que acabei por pedir filetes de peixe galo (15.95) até ter ouvido que havia bacalhau com broa, como plat du jour. Ainda fui a tempo, e em boa hora, porque estava excelente.

O Galeto tem os seus segredos e guarda-os bem à vista. Num canto, existe um pequeno expositor singular, com um santo que fiquei a saber era São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis. Gosto de locais que exibem as idiossincrasias sem explicar razões e motivos. Sou fã de mistérios e fui investigar enquanto a Leonor não se calava com os detalhes do que passara no cabeleireiro nessa manhã. Fingi que esperava uma mensagem très important, meti-me a pesquisar no telefone e percebi que o santo é muito popular no Brasil, donde talvez esteja ali porque o Galeto foi fundado por emigrantes portugueses no Brasil, o que aliás se reflete desde sempre dans le menu, onde há feijoada à brasileira (17.90), churrasco (23.50) ou picanha (17.95). Pude ainda descobrir que ‘galeto´é um pequeno frango de churrasco com origem em Itália que terá sido introduzido no Brasil pela imensa imigração nos anos 50 e 60 e trazido para Lisbonne posteriormente. Petit monde

Um colega do meu pai era jornalista de automóveis e dizia sempre que para meter defeitos nos carros, o mais seguro era criticar a localização do cinzeiro dentro do automóvel. No Galeto já não há cinzeiros à vista, mas também não há vinho a copo, o que me parece um absurdo. Em compensação existem pratos infantis a menos de 10 euros, para quem queira levar les enfants a comer um burguer. É triste que o Galeto tenha vendido os seus individuais em papel a publicidade. Entendo que cada euro poupado seja um euro ganho, porém sou da opinião que estas são as grandes oportunidades perdidas, seria como o jantar de Natal da nossa avó ter os guardanapos metidos num anel de plástico verde alface. Vale mesmo a pena ofuscar o património emocional de um local como o Galeto com individuais comerciais? Lembro Schopenhauer, “la vie n’est jamais belle ; seules les images de la vie sont belles.”e, já que vou lançada, também é de lamentar que a loiça não ser personalizada. Deixo aqui a informação de um amigo que sabe destas coisas: loiça personalizada dá direito a aumentar os preços em 10%. Ninguém reclamará.

Seja como for, no final, dividimos um sublime gelado Galeto (8.25), fechando os olhos às inúmeras sobremesas de fabrico próprio que serão deliciosas, mas engordam e como ainda estamos em fase de manter promessas de ano novo, ficaram por provar.

Abertos da sete e meia da manhã às três da madrugada, o Galeto sublinha o que somos. De manhã uma coisa, de tarde outra e de noite outra ainda, bem diferente. É um dos estabelecimentos na capital onde se pode ir com segurança depois do cinema ou de um concerto, sem ouvir o tão português “ah, a cozinha já fechou” e será dos poucos onde é possível comer de imediato uma canja de galinha com miúdos e massinha, porque consta da completíssima carta (3,25).

Os preços sobem a partir das dez da noite, o que, estou segura, não dissuade ninguém. Afinal de contas onde é que em todo o planeta Terra se consegue comer língua de vaca com puré (14.5) ou carne de porco à Alentejana (16.90) às duas da manhã?

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.