Voltar à cidade onde se nasceu depois de muitos anos de ausência, nem sempre pode ser uma boa ideia. E a nostalgia pode ser uma ilusão que, em vez de nos consolar, nos põe em perigo. Estas são duas das conclusões a que chega Felice Lasco (Pierfrancesco Favino), o protagonista de “Nostalgia”, do napolitano Mario Martone, que adapta aqui o romance do seu conterrâneo Ermanno Rea, assinando um filme que contrasta fortemente com “A Mão de Deus”, de Paolo Sorrentino, também ele nascido em Nápoles. Uma cidade que nunca deixa de nos surpreender e intrigar, pelas suas múltiplas representações no cinema.

Felice deixou Nápoles há 40 anos, era ainda adolescente, para ir trabalhar com um tio no Líbano. Estabeleceu-se mais tarde no Egito, tendo prosperado e casado no Cairo, cortando de tal forma com as suas raízes, que se converteu ao islamismo. A cidade que ele reencontra é ainda, em boa parte, a cidade que ele conheceu, com os seus prédios velhos e degradados, as suas ruas labirínticas, os seus acolhedores restaurantes populares, os rapazes montados em motos a zunir de um lado para o outro, as janelas que se fecham quando algo de anormal se passa na rua, e com a omnipresença da Camorra, que continua a controlar bairros inteiros, a ditar a sua lei e a desviar os jovens para o crime.

[Veja o “trailer” de “Nostalgia”:]

Quando vai visitar a mãe (Aurora Quattrocchi, numa breve mas tocante participação), já muito idosa e doente, Felice fica agastado ao saber que ela vendeu o apartamento da família no prédio onde sempre moraram e se mudou para o rés-do-chão, onde vive em piores condições. O responsável por esta mudança foi Oreste (Tommaso Ragno), um amigo de infância de Felice que é agora uma poderosa e temida figura do crime em Nápoles, conhecido como “O Homem Mau”. É aí que Mario Martone nos dá a primeira indicação de que Oreste poderá ter tido algo a ver com a partida de Felice, há quatro décadas atrás.

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Pouco a pouco, e enquanto Felice procura uma nova casa para a mãe, encontra caras do passado, caso do industrial de tecidos que lhe confessa ter estado outrora secretamente apaixonado por aquela, e conhece pessoas como o dinâmico padre Rega (Francesco Di Leva), um destemido opositor da Camorra e que lhe apresenta uma nova geração de napolitanos que ajuda a não caírem na delinquência, Martone vai-nos informando, a conta-gotas, sobre o terrível e pesado segredo de juventude que Felice guarda (e que revela apenas ao padre, numa “confissão” feita fora dos protocolos tradicionais). Um segredo que não só compromete o seu regresso (e o da família) definitivo a Nápoles, como também o põe em risco de vida.

[Veja uma cena do filme:]

“Nostalgia” é um “thriller” virado para dentro e sem ação violenta, em que a tensão é toda ela insinuada em vez de mostrada, e construída gradualmente, em surdina. O filme diz que em Nápoles, o passado não prescreve, não esquece, não perdoa. E que há como que um fatalismo ancestral que envolve a cidade e condiciona aqueles que lá vivem, e está relacionado com a presença e a influência do crime organizado. Embora haja sempre quem não se resigne e o enfrente, como é o caso do padre Rega. E Mario Martone tem no circunspetamente expressivo Pierfrancesco Favino o ator perfeito para dar corpo, rosto e convulsão íntima a um Felice Lasco que acaba por descobrir tragicamente que ali, o passado nunca se vai embora.