Uma elegância, uma clarividência, uma dúvida constante – tudo no mesmo movimento, assim vai escrevendo Rosa Montero. Partindo de uma “nebulosa cósmica de dados na cabeça”, a autora chegou “a pensar que nunca seria capaz de abrir passagem através desse bosque caótico de ideias e de referências” (p. 200). Mas lá começou e, enfrentando-se o caos, encontra-se a ordem, mesmo que a ordem seja o caos. O livro, assim, é tão ordem quanto caos, e só quando se assume a desordem é que se encontra algum sentido.

Depois de décadas de escrita, ao longo das quais Rosa Montero se tornou num dos nomes mais proeminentes, originais e fortes da produção hispano-falante, acabou por chegar este livro que, depois dos desafios que colocou à autora, outros tantos coloca a quem tem a tarefa periclitante de a criticar. Só o título já provoca qualquer coisa entre o sorriso compreensivo e o cinismo: para um escritor, o perigo de estar no perfeito juízo mal existe. Montero sabe-o e o leitor, se não o suspeitava já, fica a saber. O livro, que se passeia entre a divagação e o relato, toca nessa coisa mágica que faz nascer a escrita. É o mistério insondável dos criadores – e todos metem a mesma pata na mesma poça. Ninguém sabe porque é que escreve, mas toda a gente procura o momento, o motivo, e cogita se o talento existe ou não, se o romancista é atingido por uma seta de Cupido que obceca a vida inteira, ou se obceca a vida inteira e por isso inventa um Cupido. Não há respostas, mas, ao longo do livro, perpassa a ideia de uma certa fatalidade inerente à criação. E, aqui, temos a fatalidade em dois sentidos. Por um lado, há o desígnio obrigatório, sem hipótese de fuga. Por outro, há a ideia dita e repetida de que o motor da escrita é o combate à morte e que, sem um, o caminho para a vida só pode ser o outro.

É, por isso, apaixonante ler Rosa Montero. Não por algum motivo oculto numa camada subjectiva, mas porque o que o leitor tem em força em bruta é a paixão. Em Rosa Montero, tudo é intensidade, mas nada de emoção pingada ou atirada ou fácil. Ao invés disso, com um técnica aprimorada, Montero oferece aos leitores a brutalidade da existência, permitida apenas pela utilização de uma linguagem depurada, treinada, de quem sabe onde meter a tónica da vida.


Título: “O perigo de estar no meu perfeito juízo”
Autora: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

Páginas: 240

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Enquanto discute os caminhos por que passam os escritores, o vício feito paixão ou demência que os domina, Montero vai dando a imagem de quem parece planar à toa, mas o leitor tem o conforto de encontrar uma voz segura. Essa imagem dada, por si só, já é conforto: ao mesmo tempo que Rosa Montero vai assumindo a escrita como um caminho deambulante, apresenta uma forma inteira, um todo orgânico, o que sempre vai tendo o condão de ir descansando os seus pares. Ao partir de uma ideia de unicidade, do carácter singular de quem escreve (minoria) perante quem não escreve (larguíssima maioria), vai encontrando pontes entre quem o faz sem saber porquê. Se o vício da escrita está lá, não passa ao lado uma certa ideia de loucura, ou até a ideia de outros vícios. Ao longo das dezenas de páginas, Montero vai dando ao leitor a lista de horrores que tem erigido a produção literária mundo fora: escritores dissociados de si mesmos, entregues ao álcool, ao ópio, à cocaína, a doses industriais de cafeína. Esta ideia de dissociação, mais do que traço psicológico, acabará por interessar aos amantes da literatura mais pelo que significa em termos de produção literária e, por isso, de teoria da literatura.

Através do ponto de vista de Montero, entende-se a literatura como uma forma de ampliar a vida. Vivendo a invenção, ao mesmo tempo que se vive a lassidão dos dias, tem-se acesso a outras doses de emoção e informação, não só criando-se a possibilidade, mas também atingindo-se essa possibilidade. Em suma, a tarefa de um escritor é inventar um problema e depois resolvê-lo, e é nessa solução para um problema inventado que parece residir a resposta à vida.

Ao longo do livro, entende-se o carácter visceral da escrita, actividade que não existe à margem de um desgaste de emoção ou do seu exacerbamento. Quem lê mergulha num texto, mas quem o escreve soterra-se nele. E, quando a vida se paraleliza com o mundo que se inventa – num trabalho que, sendo trabalho, responde a outros anseios, a uma necessidade de criar para corrigir ou fazer valer –, os escritores, mais norteados por uma dose de loucura do que por uma lucidez qualquer, não apenas sentem o que sente quem inventam como são o que não são. E não é por não se ser de facto que a essência se faz menos real. Aliás, várias vezes a autora escreve sobre o papel da recepção da obra literária, que aqui legitima o início da relação dialógica que os escritores, sem que lho peçam, propõem a uma ideia anónima de leitores. Assume-se, só pela mera existência da escrita, uma certa dose de irrazoabilidade, razão pela qual um livro que aparenta tentar escavacar os motivos da escrita assume a descoberta como uma ilusão. Montero chega a dizê-lo: “E para imaginarmos essa tontice investimos o melhor da nossa existência.” (p. 102). A publicação, aqui, existe como efeito estruturante, sendo a leitura o que legitima o tempo investido, o problema criado, a obsessão. Sem a leitura, o tempo dedicado à escrita, a invenção disto ou daquilo, fica, diz Montero, à fatalista, reduzida “ao delírio de um louco” (p. 103).

Fazendo esta “autópsia invertida da criatividade” (p. 90), a autora mostra ainda a tenacidade como prova final da genialidade. Sem ela, o talento é fogo-fátuo, e será essa obsessão o que fará um escritor ou, em última instância, um artista. Partindo-se do entusiasmo, da efusão a que Montero chamou “incêndio interior”, há uma camada que exige a perpetuação da intensidade para fazer valer a vida. Essa intensidade é, ao mesmo tempo, multiplicadora, uma vez que os exemplos que a autora dá mostram que é para lá de comum que a vida não baste a quem escreve – e que essa insuficiência da realidade é o matriz fundacional da escrita.

Em O perigo de estar no meu perfeito juízo, há ainda outra ideia encantadora, que parte logo do título: o medo derradeiro de um escritor de que a vida baste, porque essa suficiência matará a busca lateral – que lhe é central. Assim, a autora assume um certo desconcerto interior como necessidade ulterior para se inventar um problema num papel e tentar concertá-lo lá. No fundo, assume-se a necessidade da ansiedade para se matar a ansiedade, e isso é preferível a não haver ansiedade a priori. A escrita parece, assim, uma corrida numa passadeira estática: o movimento é necessário, mas não se sai do mesmo sítio. Há, ainda assim, não apenas a ilusão do movimento, como o movimento real – ninguém tem dúvidas que o corpo mexe. Assim, toda a dose extra de emoção criada sem necessidade real não se torna em emoção escusada: emoção é emoção é emoção.

Lendo Rosa Montero, é isto que temos. A autora assume a dúvida ao mesmo tempo que dá a clarividência, acompanha julgando-se sozinha, abre portas parecendo sentir que tacteia. E, no que pode, engana o leitor, como o assume a páginas tantas, não vá o benévolo incauto esquecer-se de que, nas mãos de uma grande romancista, há sempre uma dose conveniente de manipulação.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.