Sportswashing. Segundo a Enciclopédia Britannica, trata-se da utilização de um evento desportivo por parte de um indivíduo, de um governo, de uma empresa ou de qualquer outro grupo com o objetivo de “promover ou limpar a própria reputação, especialmente quando envolta em controvérsia ou escândalo”. 

O termo foi popularizado em 2015, quando o Azerbaijão organizou os Jogos Europeus e o evento foi interpretado como uma forma de retirar atenção à crescente preocupação internacional com as violações dos direitos humanos no país. Ganhou proeminência em 2018, quando a Amnistia Internacional começou a usar a expressão para abordar o Campeonato do Mundo que decorreu na Rússia. E tornou-se praticamente global no último ano, tendo sido a adjetivação mais recorrente para o Mundial do Qatar.

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Nos últimos meses, particularmente nos últimos dias, nenhum outro país tem sido tão associado ao tal sportswashing como a Arábia Saudita. Depois da ida de Cristiano Ronaldo para o Al Nassr, numa transferência que prometia mudar o paradigma do futebol do país e abrir as portas da Europa ao campeonato saudita, o atual mercado de verão está a mostrar que não se tratou apenas de uma manobra de diversão. Mais: que o capitão da Seleção Nacional pode ter sido apenas o principal gatilho inicial de uma autêntica revolução no desporto mais popular do mundo.

Mas comecemos pelo início. Ou melhor, pelo golfe. Em 2019, a Golf Saudi, uma divisão do Fundo Público de Investimento da Arábia Saudita, anunciou a intenção de fundar um novo circuito internacional de golfe para competir com o histórico e estabelecido PGA Tour, que existe desde os anos 70. Na altura, o diretor do PGA Tour indicou desde logo que qualquer golfista que participasse nos eventos do novo LIV Golf seria suspenso – uma promessa que cumpriu em junho do ano passado, quando afastou 17 jogadores que estiveram no torneio inaugural do recém-fundado circuito.

O problema? O LIV Golf conseguiu atrair verdadeiros campeões da modalidade, como Brooks Koepka, Patrick Reed e Phil Mickelson, e ameaçava continuar a desviar os principais golfistas através de prémios milionários e quantias que em nada poderiam ser comparadas às do PGA Tour. Com muitos dos eventos a acontecerem em propriedades de Donald Trump, o antigo presidente dos Estados Unidos que é um conhecido aficionado do desporto, o novo circuito parecia estar a ser bem sucedido na missão de dividir o golfe e organizar uma liga separada onde reinava o dinheiro. Até que aconteceu o impensável.

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No início do atual mês de junho, o PGA Tour, o PGA European Tour e o LIV Golf anunciaram que chegaram a acordo para a criação de um único circuito. O Fundo Público de Investimento da Arábia Saudita vai inicialmente servir como investidor exclusivo, reservando o direito de rejeitar futuros investimentos, enquanto que o PGA Tour fica com a capacidade de nomear a maioria dos membros da direção. Ou seja? A Arábia Saudita (e o dinheiro aparentemente ilimitado que traz na bagagem) conseguiu levar o conflito até ao ponto em que o status quo pré-existente cedeu e aceitou ser controlado pelo país.

Algo que, de uma maneira bem mais subtil, os sauditas já tinham tentado fazer no futebol. Primeiro com o apoio ao plano falhado de Gianni Infantino de criar um abrangente Mundial de Clubes em 2020, tendo sido imprescindíveis para as garantias que permitiram o empréstimo do SoftBank. E depois com as mesmas garantias que permitiram o empréstimo do JP Morgan que viabilizava a Superliga Europeia que também não singrou. Ao contrário do que aconteceu no golfe, o futebol não partiu. E a Arábia Saudita teve de encontrar uma abordagem diferente para tentar começar a controlar o verdadeiro desporto de massas.

Os primeiros passos foram os mais óbvios e passaram pelos cada vez mais naturais acordos publicitários, sendo que a ligação ao Manchester United foi sempre a mais visível. Seguiu-se a organização de eventos europeus, como a Supertaça de Espanha e Itália, levando muitos adeptos espanhóis e italianos até Riade. Depois, a polémica e demorada aquisição do Newcastle. O último passo, tal como aconteceu no Qatar, será a eventual organização de um Campeonato do Mundo. O degrau que pode levar a Arábia Saudita até lá, o processo que está atualmente em curso, é a modernização e a aceleração do próprio campeonato.

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Em conjunto com a Grécia e o Egito, os sauditas formalizaram uma proposta que pretende receber o Mundial 2030 – ou seja, que compete diretamente com a candidatura de Portugal, Espanha, Marrocos e Ucrânia e também com a da Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai. A organização do Campeonato do Mundo está incluída na “Visão 2030”, o grande plano económico anunciado pelo príncipe Mohammed bin Salman que pretende reduzir a dependência do país do petróleo ao diversificar a economia, desenvolvendo setores públicos como a saúde, a educação, as infraestruturas e o turismo. Para vencer o processo de candidaturas à organização da competição, porém, é necessário cumprir a tal modernização e aceleração da Saudi Pro League, algo que também está bem explícito na “Visão 2030”.

Como parte do plano, o Fundo de Investimento Público adquiriu quatro dos clubes sauditas: o Al Ahli, que já foi treinado por Vítor Pereira e José Gomes; o Al Hilal, que já foi treinado por Artur Jorge, José Peseiro, Jorge Jesus e Leonardo Jardim e onde jogam Marega e Carrillo; o campeão Al Ittihad, atualmente treinado por Nuno Espírito Santo e que acabou de contratar Benzema; e o Al Nassr, onde está Cristiano Ronaldo. A ideia, segundo o The Independent, foi seguir a lógica de que todos os principais campeonatos do mundo precisam de um top 4 para estimular a competitividade e atrair o mercado das transmissões televisivas.

Os restantes 12 clubes da Saudi Pro League podem contratar um jogador estrangeiro de topo, enquanto que as quatro principais equipas podem contratar três – numa forma clara de subir o nível qualitativo do campeonato, como um todo, enquanto a própria liga também é valorizada até atingir os expectáveis 400 milhões de dólares por temporada que estão previstos na “Visão 2030”.

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Para além do dinheiro, a Arábia Saudita conta com uma característica de que o Qatar ou os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, não beneficiam: o facto de a população gostar efetivamente de futebol. Ao contrário do que acontece nos estádios dos outros dois países, os estádios sauditas enchem para assistir aos jogos do campeonato e os adeptos são apaixonados pela modalidade, numa dedicação que não tem grande termo de comparação naquela região do mundo. Com dinheiro, com competitividade e com essa paixão, a ideia generalizada na Arábia Saudita é de que a Saudi Pro League nunca chegará aos calcanhares da Premier League ou da La Liga, pelos motivos óbvios, mas poderá chegar perto dos níveis de intensidade e interesse da Ligue 1 ou da Serie A.

“A fusão do LIV Tour com o PGA Tour é a principal prova de que o desporto se tornou central para a estratégia de soft power da Arábia Saudita. A revitalização da liga doméstica, em conjunto com um eventual Mundial 2030 e com a aquisição do Newcastle, também será um elemento-chave. Se o golfe traz respeito, o futebol traz cultura de massas e popularidade. E a Arábia Saudita precisa dessas duas coisas para cumprir os ambiciosos planos internos – numa altura em que os capangas de Mohammed bin Salman continuam a ter as botas bem assentes nas gargantas da sociedade civil”, explicou Nick McGeehan, da organização de direitos humanos FairSquare, numa entrevista ao The Independent.

Cristiano Ronaldo, naturalmente, foi o primeiro protagonista desse processo. Lionel Messi poderia ter sido o segundo, se não tivesse optado por rumar aos Estados Unidos e ao Inter Miami – uma atitude que não foi repetida por Karim Benzema, que abdicou do Real Madrid e da Liga dos Campeões para assinar pelo Al Ittihad de Nuno Espírito Santo. Sem que ainda seja conhecido o futuro de Luka Modric, que também tem mercado e propostas na Arábia Saudita, já são praticamente certas as idas de Ziyech, Mendy, Koulibaly e Kanté para a Saudi Pro League, com Thomas Partey e Aubameyang a terem também luz verde por parte do Arsenal e do Chelsea para ouvir os sauditas. Os últimos dias, porém, trouxeram uma nova dimensão deste paradigma.

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Rúben Neves, internacional português que é capitão do Wolverhampton e que durante muito tempo foi associado ao Barcelona, está muito perto de assinar pelo Al Hilal a troco de 55 milhões de euros. Aos 26 anos, o jogador formado no FC Porto não está perto de terminar a carreira, tinha várias opções para ficar na Premier League ou mudar-se para outro dos principais campeonatos europeus e tem a intenção de estar no Euro 2024 no próximo ano. Ainda assim, não conseguiu recusar o salário milionário que está garantido na Arábia Saudita e a ideia de que a estabilidade familiar e financeira fica salvaguardada com algumas temporadas cumpridas no país.

Adicionalmente, e olhando para o mercado português, Jorge Jesus continua a ser associado à seleção da Arábia Saudita depois de ter orientado o Al Hilal entre 2018 e 2019. Luís Castro, atualmente no Botafogo, interessa ao Al Nassr de Cristiano Ronaldo, que também está a tentar contratar William Carvalho, internacional português que representa o Betis. Ivo Rodrigues, que estava no Famalicão, assinou pelo Al Khaleej, enquanto que o guarda-redes brasileiro Paulo Vítor trocou o Desp. Chaves pelo Al-Akhdoud.

O assalto do futebol saudita aos campeonatos europeus é desde já uma evidência e já não se aplica somente aos jogadores que pretendem uma reforma dourada, como é exemplo Rúben Neves. E o presidente da UEFA já reagiu ao fenómeno. “Os jogadores que querem vencer as melhores competições estão na Europa. Ir às compras não vai melhorar o futebol saudita. Digam-me um jogador de alto nível, jovem, que tenha ido para a Arábia Saudita. Os melhores jogadores da Europa vão para a Arábia Saudita em busca de mais dinheiro no final das carreiras”, referiu Aleksander Čeferin, numa declaração que não deixa de parecer desde já desatualizada.